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Os impactos da nova lei de bioinsumos no agronegócio brasileiro

24/07/25

Meio Ambiente

Os impactos da nova lei de bioinsumos no agronegócio brasileiro

Pesquisador Leonardo Munhoz, da FGV, comenta os avanços, desafios e perspectivas da primeira legislação mundial dedicada exclusivamente a insumos biológicos

A sanção da Lei nº 15.070/2024, em dezembro de 2024, representou um marco para a agricultura brasileira. Pela primeira vez, o país passou a contar com um instrumento jurídico específico e abrangente para regular a produção, a comercialização, a fiscalização e o uso de insumos de origem biológica destinados à agropecuária. O objetivo é reduzir a dependência de insumos químicos, estimular práticas sustentáveis e fomentar a inovação, colocando o Brasil na vanguarda de um marco regulatório exclusivo para bioinsumos.

O setor já exibe relevância econômica e ambiental: movimenta cerca de R$ 5 bilhões por safra e registra crescimento anual de 13 % na área tratada — ritmo superior à média mundial —, segundo um estudo da CropLife Brasil em parceria com o Observatório de Bioeconomia da FGV. Na safra 2023/2024, os bioinsumos cobriram 26% da área plantada no Brasil, com forte adoção em culturas como soja, milho e cana-de-açúcar. A nova legislação contempla duas frentes principais: biofábricas industriais, sujeitas a rigorosos padrões técnicos, e a produção on-farm, que autoriza os próprios produtores a fabricar insumos biológicos para uso interno, com regras simplificadas.

Apesar dos avanços, persistem desafios: ampliar a assistência técnica, garantir rastreabilidade e consolidar dados sobre produção e uso. A regulamentação da lei, prevista para ser concluída até dezembro de 2025, será decisiva para estabelecer os detalhes operacionais que viabilizarão essa inovação regulatória.

Para discutir impactos e perspectivas, o Insper Agro Global ouviu Leonardo Munhoz, pesquisador do Centro de Estudos do Agronegócio (FGV Agro) e do Observatório de Bioeconomia da Fundação Getulio Vargas.  Advogado, doutor e mestre em Direito Ambiental pela Elisabeth Haub School of Law da Pace University (EUA), Munhoz é especialista em marcos regulatórios do setor.

 

Quais foram os principais avanços trazidos pela Lei 15.070/2024 em relação à legislação anterior?

O avanço mais importante é o ineditismo do marco legal. Essa é a primeira norma que trata os bioinsumos de forma específica no Brasil. Antes dela, esses produtos eram regulados de maneira dispersa, muitas vezes como se fossem defensivos químicos, o que gerava insegurança jurídica e atrasos na adoção de tecnologias. A nova lei cria uma distinção clara entre insumos químicos e biológicos — tanto no campo dos fertilizantes quanto dos defensivos — e inaugura uma abordagem própria para os produtos de base biológica.

Outro ponto essencial é a diferenciação entre a produção comercial, feita pelas biofábricas, e a produção on-farm, realizada pelos próprios produtores rurais. Essa distinção, além de reconhecer uma prática já existente, confere respaldo legal e permite a adoção de padrões diferentes de exigência, de acordo com a escala e o risco envolvido. Isso é particularmente relevante para pequenos e médios produtores, que antes atuavam em uma zona cinzenta do ponto de vista regulatório.

Por que o Brasil escolheu um modelo regulatório distinto do que existe em outras regiões do mundo?

Essa diferenciação parte de uma necessidade prática. Em muitos países, como os Estados Unidos, a produção de bioinsumos on-farm é tratada dentro da regulação de agrotóxicos. Na União Europeia, está vinculada à produção orgânica. O que o Brasil fez foi algo inovador: criou um marco regulatório específico e independente, que não está subordinado nem à lógica dos defensivos químicos nem à dos orgânicos.

Isso é importante por duas razões. A primeira é a clareza normativa: evita conflitos e sobreposições regulatórias, que costumam gerar insegurança jurídica. A segunda é o reconhecimento de que os bioinsumos não se encaixam perfeitamente em nenhum dos modelos anteriores — eles têm particularidades que exigem um regime próprio. Ao estabelecer esse novo marco, o Brasil assume um papel de liderança, sendo o primeiro país do mundo a tratar os bioinsumos dessa forma.

Além disso, a lei ajuda a pacificar uma tensão histórica entre a indústria e os produtores. Havia uma visão de que a produção on-farm poderia competir de maneira desleal com as biofábricas. A nova norma mostra que ambas as formas de produção são legítimas e podem coexistir, desde que respeitem os limites e exigências estabelecidos.

A produção on-farm trará impactos concretos para os produtores de menor porte?

Sem dúvida. A regulamentação da produção on-farm representa uma grande oportunidade para pequenos e médios produtores. Ao permitir que eles produzam seus próprios bioinsumos, com menor burocracia e sem necessidade de registro federal, a lei abre caminho para uma redução de custos e para uma maior autonomia tecnológica.

No entanto, é importante dizer que essa produção não pode ser feita de qualquer maneira. A ideia de que basta misturar alguns microrganismos num tambor é equivocada. Uma produção on-farm eficaz exige estrutura, conhecimento técnico e, muitas vezes, equipamentos semelhantes aos de uma biofábrica em menor escala. É por isso que a regulamentação da lei será fundamental para definir requisitos mínimos, guias de boas práticas e mecanismos de controle de qualidade.

Outro ponto que precisa ser resolvido é o cadastro. A lei prevê que os produtores deverão se cadastrar no sistema do Ministério da Agricultura, mas ainda não está claro o que esse cadastro exigirá, como será feito e quem fiscalizará. Se isso não for bem detalhado, corre-se o risco de termos insegurança jurídica e ineficiência regulatória.

A tecnologia necessária para a produção on-farm já está disponível?

Sim, ela está disponível — e já vem sendo aplicada por produtores de algumas culturas, como o algodão. No entanto, ela ainda precisa ser disseminada com mais qualidade. O grupo de trabalho que discute a regulamentação da lei está avaliando alternativas para garantir padronização e eficácia. Uma das propostas em análise é a disponibilização, por parte da indústria, de kits de biofábrica padronizados. Esses kits conteriam os microrganismos em formulações estáveis e equipamentos adequados, além de manuais de boas práticas.

Essa padronização ajudaria a garantir que os insumos produzidos on-farm sejam seguros para o meio ambiente, para a saúde humana e, ao mesmo tempo, eficazes no controle de pragas ou na promoção do crescimento vegetal. É uma forma de democratizar o acesso à biotecnologia sem comprometer a qualidade.

A lei permite a produção on-farm por cooperativas. Quais cuidados devem ser observados?

A participação das cooperativas é estratégica, especialmente para democratizar o acesso à tecnologia. Muitas vezes, pequenos produtores não têm escala ou recursos para montar suas próprias biofábricas. As cooperativas, por sua vez, podem oferecer infraestrutura, capacitação e assistência técnica.

No entanto, é preciso ter atenção a um ponto crucial: a produção feita pela cooperativa deve ser destinada exclusivamente aos seus membros, para uso próprio. Caso essa produção ganhe caráter comercial — isto é, caso a cooperativa comece a vender bioinsumos para terceiros —, ela deverá se submeter às exigências aplicáveis às biofábricas industriais, incluindo registro no Ministério da Agricultura e pagamento de taxas.

Portanto, o decreto regulamentador precisará estabelecer limites claros de escala, rastreabilidade e finalidade de uso, de forma a evitar distorções e garantir que a produção coletiva continue dentro dos parâmetros da produção on-farm.

Como a nova lei impacta o setor industrial de bioinsumos?

O impacto é bastante positivo. A lei cria um ambiente regulatório mais claro e menos burocrático, o que favorece o investimento em inovação. A existência de um marco legal específico sinaliza, inclusive para o mercado internacional, que o Brasil está comprometido com o desenvolvimento da bioeconomia.

Um ponto importante é a questão das patentes. Hoje, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) ainda não tem fluxos próprios para registro de bioinsumos, o que atrasa o processo de proteção intelectual dessas inovações. Com a nova lei, espera-se que esses fluxos sejam desenvolvidos, permitindo maior segurança jurídica para as empresas que investem em pesquisa e desenvolvimento de soluções biológicas.

Qual o potencial de crescimento desse mercado nos próximos anos?

Segundo estudo que realizamos na FGV em parceria com a CropLife, o mercado de bioinsumos no Brasil já movimenta cerca de R$ 5 bilhões por safra, mas esse valor deve crescer de forma expressiva nos próximos anos. Globalmente, a previsão é que a taxa de crescimento anual até 2032 fique entre 13% e 14%, atingindo cerca de US$ 45 bilhões, o triplo do valor atual.

Esse crescimento se deve a múltiplos fatores: busca por sustentabilidade, aumento da resistência de pragas a defensivos químicos, preocupação ambiental, pressão por menor impacto residual nos alimentos e, mais recentemente, a instabilidade geopolítica global, que afetou cadeias de fornecimento e aumentou os custos dos insumos importados. Tudo isso abre espaço para soluções locais, mais sustentáveis e competitivas.

A TREPDA, taxa criada pela nova lei, pode ser um entrave?

A criação da TREPDA (Taxa de Registro de Estabelecimento e Produto da Defesa Agropecuária) é um mecanismo de sustentabilidade do próprio sistema regulatório. Ela só se aplica às biofábricas e ao comércio de bioinsumos — a produção on-farm está isenta. Os valores são menores do que os praticados atualmente para agrotóxicos, o que sinaliza uma política pública de estímulo à biotecnologia.

É claro que, idealmente, poderíamos pensar em um sistema sem taxa, mas é preciso viabilizar tecnicamente a análise e o acompanhamento dos produtos. O importante é que os custos estejam equilibrados e compatíveis com a realidade do setor, e, nesse ponto, a nova lei parece acertar ao criar uma taxa proporcional.

Existe risco de conflito com leis estaduais ou com o PL do Licenciamento Ambiental?

Do ponto de vista formal, não. A Lei de Bioinsumos é uma norma geral federal, que estabelece diretrizes que os estados devem seguir. O que pode ocorrer é uma dificuldade operacional nos estados para assumir a fiscalização da produção on-farm, como previsto na nova legislação. Isso exigirá treinamento, estrutura e recursos.

Em relação ao Projeto de Lei do Licenciamento Ambiental (PL 2.159/2021), há uma lacuna. A nova lei de bioinsumos não menciona o licenciamento ambiental, o que pode gerar dúvidas. O PL, por sua vez, isenta atividades agropecuárias extensivas e de baixo impacto, mas não trata diretamente da produção de bioinsumos. Uma leitura sistemática pode levar à interpretação de que, na ausência de isenção específica, tanto a produção comercial quanto a on-farm precisarão de licenciamento. Isso precisa ser harmonizado via regulamentação infralegal.

O Brasil pode ter um papel de destaque no mercado global de bioinsumos?

O Brasil reúne todos os elementos para isso. É um dos maiores mercados consumidores de insumos agrícolas do mundo, possui uma base agroindustrial sólida, instituições de pesquisa reconhecidas — como a Embrapa — e agora conta com um marco legal moderno e exclusivo para bioinsumos.

Além disso, temos uma vantagem comparativa: enquanto países desenvolvidos concentram a produção de patentes, mas não usam os produtos em larga escala, e países em desenvolvimento usam, mas não produzem, o Brasil pode fazer as duas coisas. Somos consumidores e, ao mesmo tempo, temos capacidade tecnológica e produtiva.

Apesar dos avanços indiscutíveis trazidos pela Lei nº 15.070/2024 ao estabelecer um marco legal específico para bioinsumos, é importante reconhecer que sua eficácia plena dependerá diretamente da regulamentação infralegal ainda pendente. Há um caminho considerável a ser percorrido para definir critérios técnicos, procedimentos de fiscalização, padrões de qualidade e mecanismos de controle tanto para a produção industrial quanto para a on-farm. Sem esse detalhamento normativo, persistem riscos de insegurança jurídica, falhas na rastreabilidade e desigualdades na aplicação da lei entre os diferentes estados brasileiros.

Se avançarmos em três pontos — agilidade no processo de patentes, qualificação da fiscalização estadual e regulamentação clara —, poderemos influenciar como outros países vão tratar essa matéria nos próximos anos.

 

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