Hidrogênio verde representa enorme oportunidade para o agronegócio
16/11/23 - Tiago Cordeiro
Especialista em hidrogênio e célula a combustível, a pesquisadora Monica Saraiva Panik analisa o potencial dessas tecnologias para o Brasil
Formada em Comunicação Social pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e com MBA em Marketing pela Fundação Getulio Vargas (FGV), Monica Saraiva Panik diz que se tornou pesquisadora em engenharia “por osmose”. “Desde que me formei, atuei com indústria automotiva, cercada por engenheiros. Casei-me com um, há 25 anos”, relata.
Nascida em São Paulo, Monica se mudou para os arredores de Stuttgart, na Alemanha, em janeiro 1997, quando o marido alemão, diretor na montadora Daimler, foi chamado de volta para seu país. A partir do ano seguinte, Monica passou a se aprofundar nas pesquisas com hidrogênio verde, que já avançavam no país europeu, mas não com a quantidade de recursos e o senso de urgência de hoje. “Na época, o foco era a descarbonização da mobilidade e o desenvolvimento da tecnologia de células a combustível em veículos”, diz Monica.
A situação começou a mudar no final de 2017, quando países da Europa, da Ásia e os Estados Unidos concluíram que era preciso descabonizar simultaneamente a indústria, os transportes e a geração de energia. Nesse contexto, o hidrogênio passou a ser considerado um dos pilares da transição energética, capaz de contribuir para a redução das emissões de gases de efeito estufa em diversos setores da economia.
Mas precisa avançar ainda mais rápido, aponta Monica. “O atual cenário representa uma enorme oportunidade para o Brasil, entre outros países com grande potencial em fontes renováveis de energia, que podem se aproveitar da janela de seis anos até 2030, quando estarão operando as unidades de produção de hidrogênio e derivados em grande escala anunciadas globalmente. Além disso, o comércio internacional e os mercados locais estarão maduros, orientados pelo compromisso de alcançar 50% de redução das emissões de CO2”, diz a pesquisadora brasileira, que atualmente é mentora da mobilidade a hidrogênio da SAE Brasil (associação que reúne engenheiros, técnicos e executivos da área da mobilidade) e curadora da BW Expo Summit Digital (movimento que promove melhores práticas para diminuir o impacto ambiental das atividades humanas).
A pesquisadora, que foi nomeada recentemente uma das mulheres de destaque na área de transportes pelo Ministério Federal Alemão para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (BMZ) e pela Sociedade Alemã para Cooperação Internacional (GIZ), aponta que o Brasil entrou tarde na corrida pelo hidrogênio verde, mas tem grande potencial de ganhar relevância global nesse mercado. Ela afirma também que o agronegócio brasileiro, em especial, pode se beneficiar enormemente das tecnologias nessa área.
Na entrevista a seguir, Monica analisa o cenário atual, fala sobre as perspectivas para os próximos anos e aponta caminhos, especialmente para a indústria de fertilizantes.
Qual é o real papel do hidrogênio e do hidrogênio verde no atual contexto de transição energética?
Monica Saraiva Panik – Quando comecei a trabalhar no setor do hidrogênio, há 25 anos, ele era visto apenas como um combustível alternativo para mobilidade. A partir do final da década de 1990, as montadoras de veículos, norte-americanas, europeias e japonesas, tiraram essa tecnologia da área de pesquisa e a levaram para o setor de desenvolvimento, com o objetivo de produzir veículos movidos a célula a combustível.
Naquele momento, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) lançou uma iniciativa de demonstração de ônibus urbanos movidos a célula a combustível em cinco países, incluindo o Brasil. Acompanhei os estudos de viabilidade de todos os grupos. O Brasil e a China foram adiante em suas iniciativas. Eu me dediquei mais ao projeto brasileiro, por sinergia, atuando como gestora. Trabalhei na iniciativa por 16 anos, terminando em 2016. O projeto resultou em quatro ônibus movidos a hidrogênio circulando na região metropolitana de São Paulo e uma estação de produção e abastecimento de hidrogênio verde na garagem da Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo (EMTU). Se fosse hoje, esse projeto teria muito mais visibilidade e continuidade, porque o setor do hidrogênio ganhou outra dimensão ao se vincular às metas de descarbonização comprometidas no Acordo de Paris de 2015.
Quais dificuldades técnicas no uso do hidrogênio têm sido superadas, notadamente no que diz respeito à mobilidade?
A indústria de hidrogênio verde é uma das que mais recebem investimentos atualmente. Em alguns países, como a Alemanha, onde o desenvolvimento começou mais cedo, já é um setor consolidado. Mais do que técnico, o desafio, em nível global, é ganhar escala.
Como o mercado cresceu, os países cuja indústria está consolidada não conseguem atender à demanda anunciada. Há hoje no mundo 200 gigawatts (GW) de capacidade de eletrólise em projetos anunciados de produção de hidrogênio verde e derivados até 2030, segundo a empresa de consultoria global Roland Berger. Estamos diante de uma demanda futura muito grande, a qual as fábricas instaladas atualmente não vão conseguir atender.
Este cenário representa uma enorme oportunidade para o Brasil, que possui um parque industrial instalado, com grande presença da indústria global do setor do hidrogênio e células a combustível, e pode sediar novas linhas de produção de componentes, máquinas e equipamentos, com o objetivo primeiramente de atender o mercado global e, posteriormente, o mercado nacional. No entanto, o Brasil precisa aproveitar a janela de seis anos até 2030, uma vez que está competindo com outros países, como a África do Sul, Austrália, China e Estados Unidos. Em 2030, o setor global do hidrogênio estará maduro e a liderança de países e regiões já consolidada.
É uma competição, e o Brasil, com seu imenso potencial de energias renováveis, pode se tornar um dos países líderes na corrida tecnológica e na transição energética, atraindo grande parte dos investimentos da economia verde e gerando empregos em todos os elos da cadeia do hidrogênio verde e derivados.
Qual é o potencial do Brasil nessa área?
A migração para o hidrogênio verde é muito mais simples em um país como o Brasil, cuja matriz elétrica é mais de 90% renovável. Esse é o grande tesouro do país. Nenhuma outra nação de grande porte tem um setor elétrico renovável consolidado. Em todas as regiões do país existem inúmeras fontes de energia renovável para ampliar e diversificar a produção de hidrogênio verde e derivados, incluindo solar e eólica (onshore e offshore), hidrelétrica e resíduos de biomassa, inclusive usando o Sistema Integrado Nacional (SIN).
O Brasil demorou para se posicionar no mercado global como potencial produtor, consumidor e exportador de hidrogênio verde e derivados. Até fevereiro de 2021, o país não aparecia no mapa global do setor do hidrogênio. Na América Latina, apenas o Chile era citado. O cenário brasileiro mudou em fevereiro de 2021, quando o estado do Ceará lançou o primeiro hub de hidrogênio verde do país. Desde então, outros estados começaram a anunciar incentivos, atraindo mais de 30 bilhões de dólares em investimentos anunciados por empresas nacionais e internacionais. Hoje existem projetos de norte a sul do Brasil, começando pelo Ceará, depois Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraná, Santa Catarina, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
No resto do mundo, a grande motivação partiu dos governos federais, que lançavam seus programas nacionais de hidrogênio. No Brasil, começou pelo setor privado, com os investidores do setor elétrico enxergando uma oportunidade de gerar novos negócios na cadeia produtiva do hidrogênio verde e derivados, e contribuindo com a industrialização de produtos de valor agregado a partir de energias renováveis, como o fertilizante verde, o aço verde, o cimento verde e outros. A mobilização dos estados levou o tema hidrogênio ao Senado e à Câmara de Deputados, e o setor se tornou uma das prioridades dos diversos ministérios e agências governamentais.
Qual será o papel do agro nesse contexto?
Uma vantagem do hidrogênio verde é sua transversalidade. Ele pode ser utilizado por todos os setores da economia. Pode armazenar energia gerada por fontes intermitentes. E serve também como insumo para a fabricação de uma série de produtos, incluindo amônia, metanol, gasolina verde, querosene, cimento, papel, vidro e aço.
Mas, para substituir 100% do carvão utilizado no processamento do minério de ferro para a produção do aço, a indústria siderúrgica precisa substituir a tecnologia de alto-forno pela chamada DRI (redução direta), o que levará algum tempo. Será preciso repensar modelos produtivos inteiros. No caso do agro, a aplicação é imediata. Uma fábrica de fertilizante pode substituir o hidrogênio cinza, produzido à base de gás natural, pelo renovável, para obter amônia verde. Não é preciso mudar em nada o processo fabril.
Isso significa que o Brasil poderia deixar de ser um importador de fertilizantes com alta pegada de carbono para se tornar produtor e exportador de fertilizantes de baixa pegada — e, portanto, de alto valor agregado. Seria possível gerar empregos e riquezas localmente, reduzindo a dependência por um insumo que é tão importante para os produtores. É viável inclusive produzir esse hidrogênio verde localmente, utilizando resíduos de biomassa, de forma a obter amônia em locais próximos à operação do agricultor.
Por sua vez, o setor sucroalcooleiro já reconhece que o hidrogênio não é um concorrente. Ao contrário, ele abre oportunidades para o setor, que pode produzir hidrogênio verde de diversas formas, como através da eletrólise da água, da gasificação de resíduos e da reforma de biogás ou de etanol. A melhor rota tecnológica se define de acordo com as características de cada região e das próprias usinas. Além disso, o setor sucroalcoleiro possui o CO2 mais desejado do mundo, que é o CO2 biogênio, especificado nos critérios de certificação europeus. O mercado é gigante porque, com o hidrogênio verde, é possível produzir uma série de derivados, ampliando a linha de produtos comercializados pelo setor.
O agro brasileiro já entende a oportunidade que o hidrogênio representa?
Entende a importância para o futuro, mas, de modo geral, ainda não conseguiu visualizar a dimensão dessa oportunidade. Falta fazer circular mais informações sobre o potencial desse mercado e a possibilidade de implementá-lo com rapidez. Mas o cenário é positivo. Ano após ano, o Brasil avança no setor do hidrogênio. Para 2024, é preciso dar incentivos para a descarbonização da indústria e dos transportes, bem como fomentar a reindustrialização e a capacitação de mão de obra para novas tecnologias, trazendo novas linhas de produção e novos investimentos para o país, além de incentivos para projetos em toda a cadeia produtiva do hidrogênio verde, a qual tem início no setor de energias renováveis, passa pela produção, pelo armazenamento e pela distribuição logística em todos os modais, até chegar aos setores consumidores na indústria, nos transportes e na geração descentralizada de energia.
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