A produção de biocombustíveis ameaça a segurança alimentar?
22/09/23 - Marcos Abdalla Campos | Leandro Gilio
O debate conhecido como “food vs fuel” não é novo, mas ganha novos elementos com a elevação do preço dos alimentos e a pressão pela transição energética
A transição global para uma matriz energética mais limpa, com menos emissões de gases de efeito estufa tem se acelerado, concomitante a um momento em que os preços globais de alimentos seguem em patamares elevados. Segurança energética e alimentar são temas cada vez mais delicados e estratégicos no âmbito geopolítico mundial e, em meio a esse contexto, volta à tona o debate conhecido na literatura científica como “food vs fuel”, que justamente opõe esses dois aspectos.
Em meados dos anos 2000, os biocombustíveis ganharam impulso como uma alternativa viável e simples para redução de emissões; vários países estabeleceram metas de ampliação do uso. No entanto, surgiram questionamentos, o primeiro relativo à disponibilidade de terras produtivas ser um fator limitante. O segundo era referente ao crescimento da utilização de produtos agrícolas com finalidade energética ser uma ameaça ao abastecimento de alimentos e até mesmo à preservação florestal.
As dúvidas à época recaiam principalmente sobre o programa americano do etanol, produzido basicamente a partir de milho, sugerindo que o aumento da demanda pelo grão elevaria os custos na produção de alimentos derivados — o mundo também vivia um período que ficou conhecido como “boom de commodities”, quando os preços de produtos agropecuários subiram fortemente diante da grande demanda chinesa, motivada pelo acelerado desenvolvimento desse país.
No entanto, diversos estudos posteriormente publicados na literatura científica (ver literatura recomendada) demonstraram que esse impacto fora bastante limitado. Embora se reconheça em muitos trabalhos alguma ocorrência de competição pelo fator terra, resultados passaram a ponderar os aspectos positivos na interdependência entre produção para combustíveis e para alimentos, tais quais: elevações em produtividade que neutralizaram efeitos negativos; geração de renda e emprego em regiões subdesenvolvidas derivadas do aumento no uso de biocombustíveis — aumentando o acesso a alimentos em determinadas localidades —; e até mesmo a possibilidade de uso dos resíduos da produção como fertilizantes de menor preço.
Portanto, as conclusões iniciais de efeitos diretos sobre a produção e preços de alimentos com origem no crescimento de biocombustíveis foram consideradas bastante simplistas naquele momento, principalmente quando eram avaliados casos como o brasileiro, onde a produção predominante de bioenergia era advinda do etanol de cana-de-açúcar, que comparada ao milho é muito mais eficiente.
Em meio a elevação dos preços dos alimentos provocada por desequilíbrios em cadeias globais de produção, em virtude da inflação das commodities agropecuárias sucedida a partir de 2020 com a pandemia e a guerra entre Rússia e Ucrânia, discute-se novamente o papel e a importância da bioenergia na transição energética. Segundo dados da Agência Internacional de Energia, de 2022 até 2027 a demanda mundial por biocombustíveis deve crescer cerca de 20%, e alternativas em estudo, como o hidrogênio verde, podem impulsionar o uso energético de produtos agrícolas. Nesse contexto, será que a competição pelo uso do recurso terra pode produzir algum efeito sobre os preços dos alimentos e a segurança alimentar global?
Primeiramente, é importante destacar que, ao longo das últimas décadas, houve grandes avanços tecnológicos tanto no lado da geração de bioenergia quanto na produção agropecuária. Há um melhor aproveitamento das matérias primas agrícolas, inclusive dos resíduos de produção, que elevam significativamente o potencial de conversão energética — nesse caso há o etanol lignocelulósico, biodiesel verde, e outros modelos mais recentes de conversão de biomassa. Além disso, na produção “dentro da porteira”, existem sistemas integrados de energia e alimentos (IFES, sigla em inglês para Integrated Energy and Food Systems), que consistem em fazendas estruturadas para intensificar e integrar a produção de energia e de alimentos, maximizando a sinergia na produção agropecuária e em sistemas agroflorestais.
Em suma, as tecnologias atuais sugerem um crescimento significativo do uso de bioenergia sem pressão significativa sobre a produção de alimentos. Especialmente no Brasil, há grande possibilidade de extensão da fronteira agrícola sobre áreas de pastagens. O crescimento no uso de bioenergia com origem agrícola também permite uma maior geração de renda em áreas rurais, que em geral são bastante defasadas em relação a seus indicadores socioeconômicos quando comparados aos das áreas urbanas ou industriais, contribuindo positivamente com a segurança alimentar em algumas regiões (atualmente, o maior problema do acesso a alimentos refere-se à renda, não à baixa oferta). Portanto, segurança alimentar e energética podem andar juntas, e o incentivo à bioenergia não necessariamente estabelece uma relação de oposição entre estes dois importantes elementos.
Referências e Leituras recomendadas
Hoffmann, R. Segurança alimentar e produção de etanol no Brasil. Segurança alimentar e nutricional, 13(2), 1-5, 2006.
Kovarsky, P. et al. Como os países tropicais podem acelerar seu protagonismo na economia net zero. MIT Sloan Management Review, Q4(13), 50-57, 2022.
Chagas, A. L. S.; Toneto-Junior, R. ; Azzoni, C. R. Teremos que trocar energia por comida? Análise do impacto da expansão da produção de cana-de-açúcar sobre o preço da terra e dos alimentos. Economia (Brasília), 9, 39-61, 2022.
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GLOSSÁRIO
Capacidade de uma nação ou região garantir um fornecimento confiável e acessível de energia para atender às necessidades de sua população e economia, minimizando riscos de interrupções ou escassez. Isso pode envolver diversificação de fontes de energia, infraestrutura resiliente e políticas energéticas sólidas.
Segurança alimentar ocorre quando todas as pessoas têm acesso físico, social e econômico permanente a alimentos seguros, nutritivos e em quantidade suficiente para satisfazer suas necessidades nutricionais.
Tipo de combustível de “origem biológica”, ou seja, derivado de biomassa, como plantas, óleos vegetais, resíduos orgânicos, ou basicamente de toda matéria-prima não mineral. Pode ser utilizado para gerar energia, incluindo combustíveis para veículos, eletricidade e calor. Em geral são uma alternativa mais sustentável em relação aos combustíveis fósseis por ser renovável e gerar menos emissões de gases de efeito estufa.
É a energia obtida de “origem biológica”, geralmente obtida a partir de biomassa vegetal, resíduos agrícolas, florestais ou até mesmo resíduos orgânicos. Ela é produzida por meio de processos como a combustão, a fermentação ou a conversão química e pode ser usada para gerar eletricidade, calor ou biocombustíveis.
É etanol produzido a partir da matéria-prima celulósica de origem vegetal, por meio da da quebra ou hidrólise da molécula de lignocelulose e posterior conversão fermentativa dos glicídios em etanol. Geralmente é produzido em usinas a partir de resíduos da produção do etanol comum (1ª geração), como bagaço e palha de cana, mas também pode ser produzido a partir de outras fontes de biomassa celulósica.
IFES vem da sigla em inglês “Integrated Food Energy Systems” que trata da integração da produção de energia com alimentos, na mesma área produtiva. Trata-se de uma forma de se intensificar a produção em uma área, que pode mesclar a produção de insumos para bioenergia com produção de lavouras temporárias, florestas e pecuária. Esse tipo de modelo de produção auxilia na redução de emissões, otimização do uso do solo e também minimiza argumentos que contrapõem a produção de bioenergia com alimentos.
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