ECONOMIA E COMÉRCIO INTERNACIONAL
A agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros?
26/05/25 - Beatriz Emi Ueda | Gabriela Mota da Cruz | Victor Martins Cardoso
Desenvolvimento Social | Política | Segurança Alimentar

Sergio Amaral
Estudos e dados questionam uma estimativa amplamente divulgada de que 70% dos alimentos consumidos no país têm origem na agricultura familiar.
A definição de agricultura familiar é sempre um tópico que gera um debate (por vezes pouco produtivo) entre pesquisadores e agentes relacionados à produção agrícola. Não há um consenso consolidado, mas a lei brasileira (Lei nº 11.326/2006) define a agricultura familiar com base em quatro requisitos principais. O agricultor é considerado familiar quando (i) possuir um imóvel rural com até quatro módulos fiscais, (ii) utilizar predominantemente mão de obra da própria família, (iii) ter a maior parte da renda proveniente de atividades do próprio estabelecimento e (iv) dirigir diretamente a produção, com o envolvimento familiar na gestão. Por ser algo rígido definido em lei, há diversos questionamentos com relação a essa definição no país, principalmente na questão que se refere aos módulos fiscais, que variam em sua dimensão conforme a região do país. Além dos pequenos produtores rurais, a legislação também inclui trabalhadores como silvicultores, aquicultores, extrativistas, pescadores artesanais, povos indígenas e comunidades tradicionais, desde que atendam a esses critérios. Para maiores detalhes sobre definições, ler: “O que é agricultura familiar e qual é sua importância no agro brasileiro?”.
A importância da agricultura familiar na produção agropecuária e para a segurança alimentar das famílias brasileiras é indiscutível. Além da grande quantidade de produtos, a agricultura familiar gera milhões de empregos, contribuindo para a redução da pobreza e para o desenvolvimento econômico dessas regiões. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, a agricultura familiar abrange cerca de 67% das pessoas ocupadas em atividades agropecuárias no país, o equivalente a 10,1 milhões de pessoas.
Contudo, há debates sobre a verdadeira dimensão da participação da agricultura familiar na produção de alimentos no Brasil. Há uma famosa afirmação de que "a agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no Brasil", que é frequentemente questionada e gera um debate pouco produtivo, fomentando uma “rivalidade” na opinião pública entre a produção considerada “comercial” e a “familiar”. A origem desta afirmação não parte de um estudo específico publicado, ou de alguma pesquisa séria de um órgão público ou privado. O dado remonta a julho de 2011, quando o Portal Brasil publicou a notícia "Agricultura familiar produz 70% de alimentos do País, mas ainda sofre na comercialização". Na ocasião, Laudemir Müller, então secretário de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário, apontou a agricultura familiar como responsável por 70% da produção de alimentos, embora enfrentasse desafios em termos de comercialização e organização. Desde então, a afirmação ganhou tração e popularidade na mídia, mas carece de uma origem baseada em fatos concretos. Essa afirmação é frequentemente questionada na literatura científica pela falta de referências e dados sólidos que comprovem a estimativa de "70%".
Ao analisar os dados dos censos agropecuários de 2006 e 2017 (últimos disponíveis), é possível ter evidências da representatividade da agricultura familiar na parcela do consumo alimentar dos brasileiros. Embora esse setor desempenhe um papel muito relevante na produção de diversos alimentos, apenas mandioca e a carne bovina são predominantemente produzidas pela agricultura familiar, com uma participação superior a 70% na produção nacional. No entanto, o consumo de mandioca entre os brasileiros é limitado, o que torna difícil afirmar que a agricultura familiar é responsável pela maioria dos alimentos consumidos no país. Além disso, os hábitos alimentares dos brasileiros favorecem o frango como principal fonte de proteína, em detrimento da carne bovina, limitando a contribuição direta da agricultura familiar no consumo alimentar nacional. Claro que produção não se reflete diretamente em consumo – há diferentes destinações dos produtos gerados na agropecuária que vão além do consumo direto do consumidor final brasileiro -, mas essa é a primeira evidência de que esse dado pode ser questionado.
Participação da agricultura familiar na produção agropecuária nacional (em % do total produzido)
Fonte: elaborado pelo Insper Agro Global com base nos dados dos Censo Agro 2006 e Censo Agro 2017
*Normas vigentes do Censo de 2017
Além disso, os números do Censo Agropecuário refletem a produção total, abrangendo tanto o mercado interno quanto a exportação, o que exige cautela na interpretação dos dados sobre o consumo familiar de alimentos. Outro fator a considerar é o caráter declaratório do Censo, em que as informações são fornecidas pelos próprios produtores sem verificação externa, o que pode influenciar a precisão dos dados.
Para avaliar a real participação desse setor, o renomado pesquisador Rodolfo Hoffmann conduziu um estudo com base na Lei nº 11.326/2006, considerando que toda a produção da agricultura familiar fosse destinada ao mercado interno (excluindo exportações, que muitas vezes também tem origem na agricultura considerada familiar). Utilizando dados do Censo Agropecuário de 2006, corrigidos para valores de 2009, o estudo do professor Hoffmann compara o total da produção agrícola familiar, estimado em R$ 62,675 bilhões, com os gastos das famílias brasileiras com alimentação, registrados na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2009, que somavam R$ 292,6 bilhões. O resultado avaliado no estudo indicou que a agricultura familiar contribui com 21,4% do consumo alimentar nacional, um percentual significativamente menor do que o valor amplamente divulgado. Para maiores detalhes ler o estudo original “A agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no Brasil?”. (Hoffmann, 2014).
Além do estudo de Hoffmann, outras pesquisas também questionam a estimativa de que a agricultura familiar responda por 70% do consumo de alimentos no Brasil. Kageyama, Bergamasco e Oliveira (2013), por exemplo, estimou uma participação de aproximadamente 50%, utilizando dados do Censo Agropecuário de 2006 e adotando uma definição mais ampla de agricultura familiar. Nesse critério, qualquer estabelecimento em que pelo menos 50% da mão de obra fosse composta por membros da família foi considerado familiar, independentemente da área ou da origem da renda (ou seja, mais abrangente do que a definição da lei e elevando a base do número de estabelecimentos considerados familiares). A análise mostrou que, embora representem 90% dos estabelecimentos rurais do brasil e empreguem 80% da população ocupada agrícola, os estabelecimentos familiares são responsáveis por 52% do valor total da produção. Para maiores detalhes, ler o estudo original completo: “Uma Tipologia dos Estabelecimentos Agropecuários do Brasil a partir do Censo de 2006” (KAGEYAMA; BERGAMASCO; OLIVEIRA, 2013).
A estimativa da participação da agricultura familiar no consumo de alimentos no Brasil enfrenta desafios metodológicos devido à diversidade do setor e à limitação de dados atualizados e contemporâneos. O Censo Agropecuário de 2017 fornece informações detalhadas, mas sua defasagem compromete a precisão das análises. Para análises mais efetivas, também é necessário complementar os dados censitários com outras fontes, como pesquisas sobre consumo alimentar e levantamentos específicos. Essas abordagens podem oferecer uma visão mais precisa da contribuição da agricultura familiar para a alimentação da população brasileira.
Embora os estudos de Hoffmann e Kageyama apresentem metodologias mais rigorosas e claras, os dados desses estudos são menos conhecidos ou divulgados que o valor de 70%, que tem uma origem questionável.
A agricultura familiar tem inquestionável relevância na produção de alimentos e não precisa de dados incorretos ou imprecisos para destacar sua importância. A complexidade do tema exige pesquisas sérias que incorporem dados corretos, recentes e métodos aprimorados. Investir nesse tipo de análise é importante não só para dimensionar o quanto a agricultura familiar leva alimentos à mesa do brasileiro, mas também para subsidiar políticas públicas eficazes e qualificar o debate o tema, valorizando a segurança alimentar o desenvolvimento rural.
Leituras indicadas:
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PROTEÍNA ANIMAL (ABPA). Home. Acesso em: 22 nov. 2024.
HOFFMANN, Rodolfo. A agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no Brasil? Segurança Alimentar e Nutricional, Campinas, v. 21, n. 1, p. 417-421, 2014. Acesso em: 04 out. 2024.
KAGEYAMA, Angela Antonia; BERGAMASCO, Sonia Maria Pessoa Pereira; OLIVEIRA, Julieta Teresa Aier de. Uma tipologia dos estabelecimentos agropecuários do Brasil a partir do Censo de 2006. Revista de Economia e Sociologia Rural, Piracicaba, v. 51, n. 1, p. 105-122, jan./mar. 2013.
RODRIGUES, Renata Muniz; SOUZA, Amanda de Moura; BEZERRA, Ilana Nogueira; PEREIRA, Rosangela Alves; YOKOO, Edna Massae; SICHIERI, Rosely. Evolução dos alimentos mais consumidos no Brasil entre 2008-2009 e 2017-2018. Revista de Saúde Pública, v. 55, Supl. 1, p. 4s, 2021. DOI: 10.11606/s1518-8787.2021055003406. Acesso em: 04 out. 2024.
* Utilize esse material como referência livremente.
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GLOSSÁRIO
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, criada em 1945. Seu objetivo é combater a fome e promover a segurança alimentar, apoiando o desenvolvimento agrícola, a nutrição e o manejo sustentável de recursos naturais. A FAO fornece dados, relatórios e análises sobre produção, consumo e comércio de alimentos no mundo.
Realizado pelo IBGE, tem como objetivo investigar informações sobre os estabelecimentos agropecuários e as atividades agropecuárias neles desenvolvidas, abrangendo características do produtor e do estabelecimento, economia e emprego no meio rural, pecuária, lavoura e agroindústria. O último Censo Agropecuário foi realizado em 2017.
Pesquisa realizada pelo IBGE que analisa os hábitos de consumo, a composição dos gastos e o padrão de vida das famílias brasileiras. Inclui dados sobre despesas com alimentação, moradia, saúde, transporte, entre outros. É utilizada como referência para entender o comportamento de consumo alimentar e para o cálculo da inflação, por meio do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC).
Representa o montante monetário gerado pela produção de todos os bens agrícolas de uma região ou país em um período específico, geralmente medido em um ano. Esse valor é calculado com base no preço de mercado dos produtos agrícolas multiplicado pela quantidade produzida.
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