ECONOMIA E COMÉRCIO INTERNACIONAL
O que é agricultura familiar e qual é sua importância no agro brasileiro?
11/03/24 - Victor Martins Cardoso
Desenvolvimento Social | Política | Segurança Alimentar | Uso da Terra
Wenderson Araújo/Trilux - Sistema CNA/Senar
Revisão de dados sobre a dimensão e importância desse segmento de produtores no Brasil
Em 1957, os professores Ray A. Goldberg e John H. Davis utilizaram pela primeira vez o termo “agronegócio” na obra “A Concept of Agribusiness” para descrever a interdependência entre a produção dentro das fazendas e outros elos que integram as cadeias de produtos de origem agropecuária. Eles observaram que a agricultura deixava de ser uma atividade fechada ao ambiente “dentro da porteira”, passando a demandar mais mão de obra, capital e tecnologia e a se relacionar cada vez mais com atividades a montante (insumos) e a jusante (processamento de produtos e serviços), compreendendo cadeias mais complexas.
Essa definição original de agronegócio não prevê qualquer menção ao tamanho da propriedade rural. No entanto, atualmente, é muito comum associá-la com a imagem de enormes propriedades ou a monoculturas intensivas em tecnologia e capital. Configurou-se assim uma divisão, inexistente na conceituação original, entre o que é chamado de “agricultura comercial” e a “agricultora familiar”, que compreende o produtor de menor porte. No Brasil é quase senso comum pensar como uma dicotomia. E assim a agricultura familiar, muitas vezes, não é incluída no que se conhece por agronegócio.
O próprio Governo Federal estimula essa divisão, com a existência de dois ministérios específicos para o apoio a cada grupo (Ministério da Agricultura e Pecuária, e Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar). Entretanto, ao se analisar dados do setor, chega-se à conclusão de que essa divisão, às vezes, é algo difícil de se sustentar.
A agricultura familiar possui diversas definições a depender do país em questão. Nos Estados Unidos, por exemplo, ela é definida como qualquer fazenda organizada como uma sociedade, parceria ou empresa familiar, excluindo aquelas que são organizadas como corporações ou como cooperativas não familiares, assim como aquelas com gestores contratados. Já os países da União Europeia seguem a definição da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), que entende como agricultura familiar todo empreendimento agrícola que é administrado e operado pela própria família, em que no mínimo 50% da mão de obra é dos familiares. Tanto a definição americana quanto a europeia englobam desde pequenas até grandes propriedades. E é exatamente nesse ponto que a definição brasileira se diferencia dessas mencionadas.
No Brasil, a agricultura familiar é definida pela Política Nacional de Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. Essa legislação define como agricultor familiar aquele que pratica atividades no meio rural e que atende, simultaneamente, a quatro requisitos:
i) não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais;
ii) utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;
iii) tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento;
iv) dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.
Fonte: Embrapa com base nos dados do IBGE (2012) e Incra (2012).
*Ver definição de módulos fiscais no glossário.
Há um reconhecimento por estudiosos de que os critérios da legislação, que foi criada há quase 20 anos, apresentam certos questionamentos [1]. São eles: (i) o atrelamento do conceito de agricultura familiar à pequena propriedade, (ii) a delimitação da mão de obra da propriedade somente à própria família proprietária e a (iii) especificação de que a maior parte da renda familiar deve ser proveniente da atividade agrícola. Apesar dos pontos levantados, as informações provenientes do histórico de implementação dessa política pública ainda constituem a melhor fonte para conduzir análises aproximadas da realidade da agricultura familiar no Brasil.
Partindo da definição disposta em lei e dos dados do IBGE sobre estabelecimentos rurais observa-se a predominância dos empreendimentos familiares no país e, portanto, uma prevalência de pequenas propriedades agropecuárias. O Brasil possui, ao todo, mais de 5 milhões de estabelecimentos rurais, sendo que 77% deste contingente é classificado como parte da agricultura familiar. A região Nordeste é onde há o maior número de agricultores familiares, representando praticamente metade da agricultura familiar brasileira.
Na maioria das cadeias de produtos, a agricultura familiar é predominante. A pecuária compreende o maior número de estabelecimentos rurais do Brasil em sua maioria classificados como agricultura familiar. Inclusive na produção de soja o número total de estabelecimentos rurais familiares é superior ao dobro dos não familiares.
No entanto, o predomínio da agricultura familiar em número de estabelecimentos rurais não significa que necessariamente ela responda pela maior parte do valor bruto da produção doméstica de produtos agropecuários. Ocorre justamente o contrário. Pelos dados do Censo Agropecuário de 2017, verifica-se que a agricultura não familiar é responsável por 89% do valor bruto da produção e por 78% do valor de venda da agropecuária brasileira. Assim, entende-se que a produção agropecuária brasileira está concentrada em uma minoria de produtores considerados não familiares pela legislação brasileira.
Os dados sobre o volume e o valor produzido de cada produto ressaltam essa realidade. Para os dez itens mais produzidos pelo agronegócio brasileiro, apenas a mandioca e o milho forrageiro são majoritariamente produzidos por empreendimentos familiares (ver gráfico). Em produtos mais pulverizados como os da horticultura e da extração vegetal a agricultura familiar é predominante, representando 71% e 62% do valor da produção nacional total, respectivamente.
Os empreendimentos rurais familiares, ainda que sejam maioria, enfrentam desafios para alcançar o nível produtivo da agricultura comercial [2]. O principal deles é o acesso ao crédito. Como a agricultura familiar está mais exposta aos riscos da atividade agrícola, o crédito torna-se mais caro e menos acessível. Como forma de solucionar esse problema e direcionar o crédito para esse público-alvo, o governo brasileiro criou, em 1995, o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).
O Pronaf é destinado a apoiar financeiramente as atividades agropecuárias conduzidas mediante emprego direto da força de trabalho do produtor e de sua família. O programa disponibiliza linhas de crédito adequadas às necessidades dos agricultores familiares, como aquisição de insumos, sementes e custeio de suas atividades.
O programa é amplamente utilizado pela agricultura familiar. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, da quantidade total de agricultores familiares que receberam crédito proveniente de programas do governo, 84% utilizaram as linhas disponíveis do Pronaf. Além disso, observa-se que a grande parte dos beneficiários utilizaram os recursos para realizar investimentos na atividade agrícola e custeá-la, enquanto apenas uma minoria destinava o financiamento obtido pelo Pronaf para a manutenção do estabelecimento e para a comercialização dos seus produtos.
Poder-se-ia concluir por esses dados que o programa de crédito atingiu o objetivo almejado, uma vez que ele beneficia a maioria dos agricultores familiares e os recursos captados são destinados para melhorar a atividade agrícola. No entanto, de acordo com o Decreto nº 3991/2001, o Pronaf tem por finalidade promover o desenvolvimento sustentável do meio rural, por intermédio de ações destinadas a implementar o aumento da capacidade produtiva, a geração de empregos e a elevação da renda, visando a melhoria da qualidade de vida e o exercício da cidadania dos agricultores familiares. Assim, faz sentido verificar se o programa conseguiu atingir esses resultados almejados pelo governo.
Há estudos que mostram um impacto positivo do Pronaf no desempenho da agricultura familiar: como aumentos na produtividade do trabalho e da terra [3] e aumento da produtividade em lavouras do Nordeste [4].
Por outro lado, há evidências de que a renda familiar dos beneficiários do programa não apresentou diferenças significativas da renda dos não beneficiários [3], além de estudos mais localizados que demonstram problemas no programa. Tais problemas referem-se a diferenças na eficiência alocativa dos recursos entre diferentes localidades [5], efeito nulo na produtividade [6] e até indução a degradação ambiental [3].
Portanto, a depender da região ou do recorte do estudo, encontram-se evidências ou resultados distintos. Linhas de crédito especiais foram criadas nos últimos anos para preencher algumas lacunas do programa, como o uso intensivo da terra provocando degradação. É o caso do Pronaf ABC+ Bioeconomia, que financia famílias para investirem na utilização de tecnologias de energia renovável, e o do Pronaf ABC+ Agroecologia como incentivo ao investimento em sistemas de produção agroecológico. Apesar dessas iniciativas, é importante estar sempre estudando o impacto das políticas de crédito rural na produção agrícola familiar para tornar a alocação de recursos ainda mais eficiente.
Referências e leituras indicadas:
[1] PEDROSO, M. T. M. NAVARRO, Z. Agricultura familiar: é preciso mudar para avançar. Brasília, DF: Embrapa Informação Tecnológica, 2011.
[2] GUANZIROLI, C. E.; BUAINAIN, A. M.; DI SABBATO, A. Evolução da Agricultura Familiar no Brasil (1996-2017). Brasília, DF: Ipea, 2020
[3] Kageyama, A. (2003). Produtividade e renda na agricultura familiar: efeitos do PRONAF-crédito. Agricultura em São Paulo, 50(2), 1-13
[4] Santos, R. B. N. (2010). Impactos da restrição ao crédito rural nos estabelecimentos agropecuários brasileiros (Tese de doutorado). Departamento de Economia Rural, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa.
[5] Magalhães, A. M., Silveira Neto, R., Dias, F. M., & Barros, A. R. (2006). A experiência recente do PRONAF em Pernambuco: uma análise por meio de propensity score. Economia Aplicada, 10(1), 57-74.
[6] MAGALHÃES, A. M.; FILIZZOLA, M. The family farm program in Brazil: the case of Parana. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E SOCIOLOGIA RURAL, 2005, Ribeirão Preto. Anais.... Ribeirão Preto: Editora, 2005. 20 páginas.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). SIDRA - Sistema IBGE de Recuperação Automática. Censo Agropecuário 2017. Acesso em 04/12/2023
Embrapa. Agricultura Familiar. Acesso em 04/12/2023
USDA. Family Farms. Acesso em 04/12/2023
CNA Brasil. Agricultura familiar vs agronegócio é uma falácia e um besteirol. Acesso em 04/12/2023
Davis, J. H., & Goldberg, R. A. (1957). A Concept of Agribusiness. Boston, MA: Graduate School of Business Administration, Division of Research, Harvard University.
Comissão Europeia. Eurostat - Agriculture statistics - family farming in the EU. Acesso em 04/12/2023
Meirelles, Hildo & Souza Filho, Hildo. Agricultura Familiar e Tecnologia no Brasil: características, desafios e obstáculos.
* Utilize esse material como referência livremente.
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GLOSSÁRIO
A agricultura familiar possui diversas definições a depender do país em questão. Nos Estados Unidos, por exemplo, ela é definida como qualquer fazenda organizada como uma sociedade, parceria ou empresa familiar, excluindo aquelas que são organizadas como corporações ou como cooperativas não familiares, assim como aquelas com gestores contratados. Já os países da União Europeia seguem a definição da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), que entende como agricultura familiar todo empreendimento agrícola que é administrado e operado pela própria família, em que no mínimo 50% da mão de obra é dos familiares. Tanto a definição americana quanto a europeia englobam desde pequenas até grandes propriedades.
Na definição brasileira, agricultura familiar pode ser definida como aquele tipo de agricultura que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos (definidos em legislação):
i) Não detenha, a qualquer título, área maior do que quatro módulos fiscais;
ii) Utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;
iii) Tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento;
iv) Dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.
Realizado pelo IBGE, tem como objetivo investigar informações sobre os estabelecimentos agropecuários e as atividades agropecuárias neles desenvolvidas, abrangendo características do produtor e do estabelecimento, economia e emprego no meio rural, pecuária, lavoura e agroindústria. O último Censo Agropecuário foi realizado em 2017.
Legislação brasileira que prevê quais agricultores são classificados como familiares e não familiares, a fim de criar uma política de crédito, de assistência técnica, de pesquisa, de comercialização, de seguro, de habitação, entre outros com foco nos agricultores familiares.
É uma unidade de medida, em hectares, cujo valor é fixado pelo INCRA para cada município levando-se em conta:
(a) o tipo de exploração predominante no município (hortifrutigranjeira, cultura permanente, cultura temporária, pecuária ou florestal);
(b) a renda obtida no tipo de exploração predominante;
(c) outras explorações existentes no município que, embora não predominantes, sejam expressivas em função da renda ou da área utilizada;
(d) o conceito de “propriedade familiar”.
O tamanho do módulo fiscal no Brasil varia de 5 a 110 hectares.
Ramo da agricultura que compreende o cultivo de plantas ornamentaise comestíveis como frutas, legumes, verduras plantas medicinais, entre outras.
A atividade extrativista se baseia na coleta de produtos alimentícios, borrachas, ceras, fibras, madeiras, oleaginosos, entre outros, em coberturas vegetais pré-existentes.
É um termo utilizado para se referir ao plantio de uma única cultura agrícola (espécie vegetal) em uma propriedade agrícola. É geralmente associado a grandes propriedades, que se beneficiam com ganhos de escala associados a especialização na produção.
Mostra a evolução do desempenho das lavouras e da pecuária no decorrer do ano, sendo calculado com base na produção agropecuária e nos preços recebidos pelos produtores agropecuários nacionais.
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