Queimadas são interessantes ao agronegócio?
20/01/25 - Thuanne Bráulio Hennig
Wikimedia Commons: Edmarjr
Embora a queimada ainda seja utilizada em algumas comunidades tradicionais como prática agrícola, trata-se de uma perturbação de grande impacto no solo, que resulta em perda de nutrientes, eficiência produtiva e degradação a longo prazo.
Entre agosto e setembro de 2024, um cenário de queimadas catastrófico se instaurou no Brasil. Propiciadas por eventos climáticos extremos, como redução nos volumes de chuva, elevadas temperaturas e ventos intensos, as queimadas se alastraram por todos os biomas brasileiros, especialmente na Amazônia e Cerrado, afetando áreas de florestas e lavouras.
De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), 2024 foi um dos anos com maior quantidade de focos de queimada registrados na última década. Em relação ao ano de 2023, no mês de agosto, foi verificado um salto de cerca de 28 mil focos para mais do que 68 mil focos em território nacional em 2024, atingindo cerca de 5,65 milhões de hectares, o equivalente ao Estado todo da Paraíba. Os prejuízos ambientais e financeiros decorrentes destes eventos são de difícil mensuração.
O Fogo é uma perturbação ecológica de grande impacto para os solos. Alguns dos principais efeitos negativos no solo decorrentes das queimadas são a perda de matéria orgânica, deterioração da estrutura do solo e interrupção de comunidades microbianas essenciais. Estes fatores podem afetar diretamente a produtividade de culturas agrícolas de interesse comercial.
As queimadas são capazes de alterar os ciclos biogeoquímicos do solo, afetando a disponibilidade de nutrientes e distribuição da fauna que vive no interior do solo, bem como podem afetar propriedades como agregação das partículas do solo, estabilidade e permeabilidade do solo. Esses efeitos são decorrentes da atividade de combustão que ocorre, principalmente, nas frações superficiais do solo, onde a temperatura média pode alcançar entre 200 e 300 ºC e podendo aumentar ainda para 500–850 °C, em função da presença de vegetação com propriedades combustíveis de alta-inflamabilidade.
As altas temperaturas geradas pelas queimadas na superfície do solo podem se propagar para frações mais profundas do solo, podendo romper os limiares de estabilidade biológica da maioria das formas de vida no interior do solo: isso quer dizer que sementes, tecidos vegetais, nutrientes e microrganismos essenciais para o desenvolvimento de plantas poderiam ser comprometidos, afetando a atividade biológica e produtiva do solo. Para ilustrar o impacto das queimadas, um hectare de lavoura contém cerca de 2 milhões de quilos de solo, dos quais 80 mil quilos são matéria orgânica (4% da composição do solo), incluindo 1,2 mil quilos de nitrogênio. Com a queimada, esse nitrogênio é perdido completamente, exigindo R$ 4,5 mil em 1,8 mil quilos de ureia para reposição. Além disso, pode levar décadas para recuperar o nível de 4% de matéria orgânica no solo. Para cada 1% de aumento de matéria orgânica, são necessárias 10 toneladas de palhada por hectare ao longo de 10 anos, podendo levar cerca de 40 anos para atingir a meta.
Figura 1 - Perfil do solo e distribuição do calor ao longo de sua profundidade
Fonte: Elaboração própria
Além dos efeitos imediatos causados pelas queimadas, é preciso considerar que a queima da cobertura vegetal do solo resulta no aumento de área descoberta do solo, favorecendo os efeitos de absorção de radiação solar bem como aos processos de erosão, que implicam na perda de solo através de ação do vento e do impacto da gota da chuva.
Ainda que a prática de queimadas na agricultura seja uma técnica utilizada por comunidades indígenas e rurais há milênios para o incremento da fertilidade do solo no curto prazo, a partir da liberação de nutrientes da vegetação queimada, a ocorrência repetida ou em excesso pode levar à degradação do solo a longo prazo. Ao longo do tempo, o progresso tecnológico introduziu novos métodos que excluem qualquer necessidade do fogo, tornando a técnica cada vez menos utilizada e considerada ultrapassada. Neste cenário, a utilização de fertilizantes, cobertura do solo por palhada e incorporação da matéria orgânica no solo reduzem a necessidade de queimadas, mas, ainda assim, a técnica continua sendo aplicada. No entanto, diferentemente das ocorrências catastróficas, há uma regulamentação e controle de manejo requerido para o caso de ainda existir a realização das queimadas.
A Política Nacional de Manejo do Fogo virou Lei em 2024 (Lei 14.944, de 2024), estabelecendo diretrizes para o uso do fogo em áreas rurais e distinguindo as queimadas controladas das queimadas prescritas e das queimadas não controladas. De acordo com a Lei, a queimada controlada se refere ao uso planejado do fogo para fins agropecuários, com autorização requerida e seguindo um plano de manejo para evitar danos ambientais. A queimada prescrita é similar, mas visa a conservação ambiental, pesquisa ou manejo da vegetação, também exigindo autorização e planejamento. Já a queimada não controlada ocorre de forma desordenada e sem autorização, geralmente ilegal, causando grandes danos ambientais, como perda de biodiversidade, destruição da vegetação e aumento na emissão de CO2. De acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), é estimado que somente as queimadas que aconteceram no bioma Amazônico entre julho e agosto de 2024 emitiram cerca de 31,5 milhões de toneladas de CO2 equivalentes.
Em linhas gerais, presume-se que as queimadas entre os meses de agosto e setembro de 2024 tenham sido de caráter não controlado, com origem incerta e talvez até criminosa, agravadas pelas condições climáticas de seca que assolaram o Brasil neste período. Como consequência, as queimadas do ano passado refletiram em grandes perdas econômicas em termos de produtividade agrícola. De acordo com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), cerca de 2,8 milhões de hectares de propriedades rurais foram afetadas pelas queimadas, com prejuízo estimado em cerca de R$14,7 bilhões. Entre as perdas, as maiores foram em áreas de pastagem e pecuária, incluindo apenas a produção de bovinocultura de corte (R$ 8.106.052,30), cana-de-açúcar (R$ 2.762.773,72), outras culturas de interesse econômico (R$ 1.068.357,61), além de infraestruturas rurais, como cercas (R$ 2.824.929,13). Os estados mais afetados pelos prejuízos causados pelos incêndios foram São Paulo, com R$ 2,8 bilhões em perdas, seguido por Mato Grosso, com R$ 2,3 bilhões, Pará, com R$ 2,0 bilhões, e Mato Grosso do Sul, que registrou prejuízo de R$ 1,4 bilhão.
Figura 2 - Número de focos de incêndio registrados em agosto de 2024 por Estado Brasileiro
Fonte: INPE
Segundo o INPE, até novembro de 2024 foram registrados 248.203 focos de queimadas no Brasil, o maior número desde 2010. Esse também é o segundo maior índice desde o recorde histórico de 393.915 focos, registrado em 2007. Esses dados evidenciam um aumento preocupante nas queimadas, colocando 2024 entre os anos mais críticos na série histórica e reforçando a necessidade de medidas para o combate e prevenção de incêndios florestais no país.
Em vista dos tamanhos prejuízos, financeiros e ambientais, o Governo Federal publicou recentemente o Decreto nº 12.189, de 20 de setembro de 2024, tornando mais rígidas as penalidades para incêndios florestais no Brasil. O decreto estabelece novas multas e intensifica penalidades já existentes, como estratégia para minimizar as práticas de queimadas. Além disso, o surgimento da Lei 14.944 de 2024, modificando o Código Florestal (Lei 12.651, de 2012) e a Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605, de 1998), prevê a substituição gradual das queimadas por técnicas alternativas, especialmente em comunidades indígenas e mais tradicionais, que ainda fazem das queimadas uma técnica de manejo.
Portanto, respondendo à pergunta título desse estudo, as queimadas já não são mais interessantes à produção agrícola há anos, já que existem e são amplamente utilizadas práticas de manejo mais adequadas e produtivas.
Referências e Leituras recomendadas
AMURAT, N. et al. Fire impacts on soil properties and implications for sustainability in rotational shifting cultivation: a review. MDPI Agriculture, v. 14, n. 9, p. 1660, 2024.
BRASIL. Lei n.º 14.944, de 31 de julho de 2024. Institui a Política Nacional de Combate a Incêndios Florestais e Crimes Ambientais. Diário Oficial da União, Brasília, 31 jul. 2024. Acesso em: 01 nov. 2024.
BRASIL. Decreto n.º 12.189, de 2024. Altera o Decreto n.º 6.514, de 22 de julho de 2008, que dispõe sobre infrações e sanções administrativas ao meio ambiente. Acesso em: 01 nov. 2024.
BRASIL. Lei n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e dá outras providências. Acesso em: 01 nov. 2024.
CONFEDERAÇÃO DA AGRICULTURA E PECUÁRIA DO BRASIL (CNA). Recomendação aos produtores rurais impactados por incêndios. Acesso em: 29 out. 2024.
Incêndios podem causar perdas irreparáveis ao solo. Compre Rural, 2024. Acesso em: 29 out. 2024.
Incêndios causam prejuízos de mais de R$ 14 bilhões no campo. G1 Globo, 26 set. 2024. Acesso em: 29 out. 2024.
INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS (INPE). Terra Brasilis: monitoramento dos focos de incêndio ativos por países. Acesso em: 01 nov. 2024.
INSTITUTO DE PESQUISA AMBIENTAL DA AMAZÔNIA (IPAM). Emissão de CO₂ por queimadas na Amazônia cresce 60%. Acesso em: 12 dez. 2024.
KLINK, C. A. et al. The role of vegetation on the dynamics of water and fire in the Cerrado ecosystems: implications for management and conservation. MDPI Plants, v. 9, n. 12, p. 1803, 2020.
MAPBIOMAS. Dados do MapBiomas mostram que área atingida pelo fogo foi 119% maior do que o mesmo período de 2023. 12 jul. 2024. Acesso em: 29 out. 2024.
SALIM, I. S. H. et al. Fire shifts the soil fertility and the vegetation composition in a natural high-altitude grassland in Brazil. Environmental Challenges, v. 9, p. 100638, 2022. Acesso em: 29 out. 2024.
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GLOSSÁRIO
Alteração em um ecossistema em nível de biodiversidade e funcionalidade causada por desastres naturais (incêndios, inundações, erupções vulcânicas) ou atividades antrópicas (desmatamento, poluição, agricultura intensiva).
Processos naturais que controlam o fluxo e a transformação de elementos químicos essenciais, como carbono, nitrogênio, fósforo e enxofre, entre a biosfera, atmosfera, hidrosfera e o solo. Esses ciclos desempenham um papel crucial na promoção da fertilidade do solo, no desenvolvimento das plantas e na estabilização do clima.
Capacidade de um ecossistema ou comunidade biológica de resistência a alterações externas e de resiliência na recuperação de uma perturbação.
Gás incolor e inodoro composto por um átomo de carbono e dois átomos de oxigênio (CO2). É um dos principais gases de efeito estufa, liberado naturalmente pela respiração de organismos e pela decomposição de matéria orgânica, bem como por atividades humanas, como a queima de combustíveis fósseis. O CO2 é essencial para a fotossíntese, mas sua quantidade em excesso na atmosfera contribui para o aquecimento global.
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