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Depois da Moratória: como garantir que a soja brasileira não seja associada ao desmatamento?

11/09/25 - Gabriela Mota da Cruz

Imagem e Comunicação | Meio Ambiente | Uso da Terra

Depois da Moratória: como garantir que a soja brasileira não seja associada ao desmatamento?

Wenderson Araújo/Trilux | Sistema CNA/Senar

Entre a experiência de um pacto voluntário e a exigência de novas formas de governança socioambiental

Em agosto de 2025, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) determinou a suspensão imediata da Moratória da Soja, um acordo firmado em 2006 para impedir a compra de grãos produzidos em áreas desmatadas na Amazônia após julho de 2008. A decisão, que abriu investigação contra associações como a Abiove e a Anec e grandes tradings globais, partiu da interpretação de que o pacto poderia configurar um arranjo anticompetitivo, limitando a livre concorrência no comércio internacional de soja. A medida repercutiu fortemente no setor e no mercado global do produto. Para entidades como a Aprosoja-MT, o fim da moratória representou o desmonte de uma barreira injusta aos produtores da Amazônia Legal. Já o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério Público Federal e organizações ambientais como o Greenpeace e a World Wide Fund for Nature (WWF) reagiram com preocupação, apontando risco de retrocesso ambiental e lembrando que o pacto ajudou a consolidar a imagem do Brasil como fornecedor confiável em mercados cada vez mais atentos à sustentabilidade.

Os números evidenciam os efeitos positivos da moratória em termos de redução significativa do desmatamento no bioma amazônico. Entre 2002 e 2008, antes de sua implementação, os municípios produtores de soja na Amazônia desmatavam em média 10.629 km² por ano; após o pacto, esse número caiu para 2.997 km² anuais, uma redução de 72% [1]. Estudos publicados em periódicos de prestígio internacional confirmam esse impacto. O estudo de Gibbs et al. (2015), publicado na revista Science, mostrou que, antes da moratória, cerca de 30% da expansão da soja ocorria em áreas recentemente desmatadas, enquanto após o acordo esse número caiu para apenas 1%. Os dados demonstram que a moratória foi eficaz em direcionar a expansão da soja para áreas já abertas, contribuindo para a conservação de matas nativas, principalmente no bioma amazônico.

Mas os efeitos positivos também conviveram com críticas. Para muitos produtores, sobretudo no Mato Grosso, a moratória representava uma forma de discriminação territorial, já que restringia a expansão da soja apenas na Amazônia, ignorando outras regiões com vegetação nativa, como o Cerrado e potenciais fronteiras agrícolas. Isso resultava em uma pressão considerada excessiva sobre produtores em determinadas áreas. Questionamentos sobre a transparência do processo de governança e sobre a predominância de grandes tradings e ONGs internacionais nas decisões também ganharam força. A Nota Técnica 18/2023 do CADE ecoou parte dessas críticas, levantando dúvidas sobre barreiras de entrada no mercado, impactos nos preços e possível violação da legislação antitruste. Foi nesse contexto de tensões que a decisão pela suspensão ganhou corpo, deixando em aberto o que substituirá o pacto que por quase duas décadas contribuiu significativamente para redução do desmatamento no Brasil [para mais detalhes, ler: NOTA TÉCNICA Nº 18/2023/DEE/CADE].

O vácuo deixado pela moratória tem como alternativa as certificações socioambientais, o que pode agora acelerar a expansão de selos privados como forma de preencher a lacuna de governança. Sem um pacto setorial de abrangência nacional, alguns mercados internacionais tendem a exigir mais garantias por meio de esquemas de certificação reconhecidos internacionalmente, capazes de assegurar critérios verificáveis e auditáveis. O Round Table on Responsible Soy (RTRS) é um exemplo de modelo de certificação internacional nesse sentido, que abrange vários critérios e oferece ao comprador possibilidades de rastreamento da produção, buscando garantir transparência às cadeias globais que utilizam soja como insumo.

O mercado europeu é o epicentro da demanda por soja certificada, com destaque para os Países Baixos e o Reino Unido, que juntos respondem por mais de 60% da adoção global do RTRS. Esse protagonismo europeu evidencia que a pressão regulatória e a exigência de cadeias livres de desmatamento seguem fortemente associadas ao consumo no bloco. O Brasil, por sua vez, aparece como o segundo maior polo de certificação, com 1,9 milhão de toneladas (25,53% do total), refletindo tanto a relevância do país como produtor quanto a necessidade de manter acesso a mercados sensíveis à sustentabilidade. A presença de países latino-americanos, como Argentina, Equador e Peru, ainda que em menor escala, reforça a disseminação gradual do modelo de certificação na região. A leitura dessa distribuição confirma que, diante da ausência de um pacto setorial robusto após a suspensão da Moratória da Soja, a certificação privada tende a se expandir como instrumento-chave de governança, sobretudo no diálogo entre produtores brasileiros e mercados internacionais altamente regulados.

 

Tabela 1 - Países compradores em 2024 de soja e milho certificados RTRS

Países Adoção (Tons) %
Países Baixos 4.007.187 53,86%
Brasil 1.899.204 25,53%
Reino Unido 461.398 6,20%
Argentina 339.791 4,57%
Itália 118.473 1,59%
Equador 99.779 1,34%
México 76.196 1,02%
Alemanha 70.879 0,95%
França 60.000 0,81%
Peru 51.742 0,70%
Dinamarca 51.159 0,69%
Irlanda 33.575 0,45%
Espanha 22.157 0,30%
Finlândia 21.116 0,28%
Turquia 20.000 0,27%
Honduras 19.213 0,26%
Suíça 15.041 0,20%
Paraguai 12.536 0,17%
Chile 10.777 0,14%
Áustria 10.540 0,14%
Taiwan 10.500 0,14%
Polônia 10.400 0,14%
Guatemala 8.430 0,11%
Chipre 2.805 0,04%
Suécia 2.500 0,03%
Canadá 1.500 0,02%
Índia 1.151 0,02%
Costa Rica 1.000 0,01%
Hungria 1.000 0,01%
Estados Unidos 104 0,00%
Japão 60 0,00%
China 9 0,00%
Fonte: RTRS (2025)

 

Fonte: RTRS (2025)

 

Figura 1 - Principais países compradores em 2024 de soja e milho certificados RTRS

Além do RTRS, há diversos modelos de certificação de soja, como o ProTerra, o ISCC e os padrões orgânicos, entre outros. Esses sistemas apresentam desafios e oportunidades que se desdobram em três dimensões centrais: ambiental, social e de mercado.

 

Quadro 1 – Dimensões da certificação de soja no Brasil

Dimensão Desafios Oportunidades
Ambiental Custos para cumprir critérios de desmatamento zero; dificuldades de produtividade e manejo de plantas daninhas em sistemas orgânicos. Uso sustentável da terra; preservação da biodiversidade; diferenciação com selos que asseguram ausência de insumos químicos.
Social Altos custos de conformidade e complexidade dos processos; barreiras de acesso para pequenos produtores. Requisitos de trabalho digno e segurança laboral; impactos positivos para comunidades locais.
Mercado Custos de auditoria e verificação; dificuldade de adesão ampla de produtores individuais. Acesso a compradores internacionais, especialmente na União Europeia; possibilidade de diferenciais de preço e reputação; modelos coletivos que reduzem despesas e ampliam participação.
Fonte: RTRS (2025)

 

Os desafios identificados na certificação da soja brasileira revelam um padrão comum: altos custos, ausência de assistência técnica e complexidade dos processos que limitam a adesão ampla. No plano ambiental, a exigência de desmatamento zero e de práticas agrícolas sustentáveis impõe barreiras técnicas e financeiras significativas, sobretudo em propriedades de menor escala e em contextos em que ainda existe a possibilidade de desmate legal dentro da legislação brasileira. No campo social, critérios como o combate ao trabalho escravo, a promoção do trabalho digno e a garantia de segurança laboral representam avanços importantes, mas demandam investimentos adicionais em gestão, assistência técnica e estrutura. Esses requisitos desafiam principalmente pequenos e médios produtores, que dispor de meios e mecanismos de controle para comprovar conformidade ambiental e responsabilidade social para acessar cadeias de maior valor. Já na dimensão de mercado, os custos de auditorias e verificações individuais continuam sendo uma barreira, diferenciando grandes exportadores, que conseguem absorver esses custos, de produtores menores, que encontram mais dificuldade em obter selos de reconhecimento internacional.

Além disso, existe o custo associado à manutenção da credibilidade desses instrumentos de certificação pelas próprias entidades responsáveis. Casos de falhas em processos de acreditação, como ocorreu no setor de créditos de carbono, mostraram como desvios podem rapidamente abalar a confiança de mercados e consumidores. Esse risco reputacional é central, já que certificações dependem diretamente da percepção de robustez e independência de suas auditorias. Nesse sentido, a Moratória da Soja funcionava como um mecanismo mais simples e direto de controle, com menos intermediários e regras uniformes aplicadas a toda a cadeia. Em contrapartida, os modelos internacionais de certificação, ao buscarem atender padrões globais, muitas vezes acabam se sobrepondo ou até mesmo entrando em tensão com legislações nacionais, o que gera questionamentos sobre sua legitimidade e alinhamento com a realidade produtiva local.

Por outro lado, existem oportunidades derivadas da maior adoção de certificação com padrões internacionais, o que pode sugerir a possibilidade de um movimento de reconfiguração estratégica da soja brasileira. Além do acesso a mercados tradicionais na União Europeia, a certificação consolida reputação e pode facilitar a entrada em novos mercados, bem como o acesso a linhas de crédito verde, cada vez mais relevantes no financiamento agrícola. No horizonte próximo, o papel da soja como insumo na produção de combustíveis sustentáveis de aviação (SAF) e marítimos amplia o potencial de inserção em cadeias energéticas globais, em setores que exigem comprovação rigorosa de sustentabilidade. Nesse sentido, certificações robustas e amplamente aceitas internacionalmente oferecem não apenas padrões de rastreabilidade e credibilidade, mas também condições para que a soja brasileira se posicione de forma competitiva em mercados altamente regulados.

A harmonização de padrões entre certificações nacionais e internacionais ganha relevância diante da entrada em vigor do Regulamento Europeu de Combate ao Desmatamento (EUDR), prevista para 2026. Ao alinhar critérios socioambientais a esse marco regulatório, a soja certificada fortalece sua posição competitiva no mercado global e responde à crescente demanda por cadeias rastreáveis e livres de desmatamento. Esse movimento indica que a certificação tende a deixar de ser um diferencial restrito a nichos específicos para se consolidar como requisito de governança e de acesso a mercados regulados.

Neste contexto, o Brasil também vem avançando no desenvolvimento de plataformas públicas, como o Agro Brasil + Sustentável, que busca se consolidar como uma alternativa oficial de garantia de boas práticas agrícolas. A proposta é oferecer uma solução nacional para rastreabilidade e certificação, integrando informações sobre conformidade ambiental, social e produtiva em uma base pública. Diferente das certificações privadas, que são voltadas principalmente a atender demandas de mercados específicos, o Agro Brasil + Sustentável pretende criar um padrão de governança reconhecido pelo Estado brasileiro, capaz de dialogar com requisitos internacionais — como o EUDR — e, ao mesmo tempo, reduzir a fragmentação regulatória enfrentada por produtores. Se bem implementado, pode funcionar como instrumento estratégico para dar previsibilidade às regras, legitimar a produção nacional e fortalecer a posição do país nas negociações comerciais. O desafio, no entanto, está em garantir que a plataforma seja robusta, transparente e confiável o suficiente para ser aceita por compradores internacionais, evitando o risco de se tornar apenas um selo burocrático, sem credibilidade no mercado global.

Essa dinâmica se conecta diretamente ao vácuo regulatório deixado pela suspensão da Moratória da Soja. Enquanto o pacto funcionou como instrumento coletivo para condicionar a expansão da produção na Amazônia, os sistemas de certificação oferecem hoje critérios verificáveis e auditáveis que cumprem função semelhante de dar previsibilidade e credibilidade às cadeias de valor. A relação entre esses instrumentos mostra que, na ausência de pactos setoriais amplos, a certificação privada tende a assumir protagonismo como mecanismo de governança, servindo de ponte entre produtores brasileiros e mercados internacionais cada vez mais orientados por regras ambientais e sociais.

O fim da Moratória da Soja abre uma fase de maior incerteza, mas também de possível redefinição institucional. Durante quase duas décadas, o pacto voluntário direcionou a expansão da produção para áreas já abertas e ajudou a consolidar um padrão de governança que conferiu legitimidade ao Brasil em mercados sensíveis à sustentabilidade. Sua suspensão, contudo, expôs limites estruturais: a dependência de acordos privados, a tensão entre livre concorrência e compromissos ambientais e as disputas entre produtores, governo e sociedade civil. O desafio agora é evitar que o vácuo regulatório fragilize conquistas socioambientais alcançadas e, ao mesmo tempo, encontrar mecanismos que deem previsibilidade às regras do jogo, condição essencial para produtores e compradores.

Nesse cenário, as certificações privadas também levantam dilemas. Por um lado, asseguram padrões reconhecidos internacionalmente, oferecem rastreabilidade e podem abrir mercados de maior valor, especialmente na União Europeia. Por outro, seu caráter voluntário e dependente de entidades externas tende a limitar a escala de adesão, concentrando-se em produtores grandes, com mais recursos. Essa lógica corre o risco de transformar a certificação em um nicho, incapaz de abarcar a totalidade da produção brasileira. Além disso, há o chamado “efeito transbordamento”: áreas nobres e produtivas tendem a se certificar, enquanto a produção marginalizada avança sobre áreas mais frágeis, inclusive sobre florestas, aprofundando desigualdades e pressões territoriais.

A reflexão, portanto, não pode ignorar o papel de padrões públicos nacionais. Iniciativas como o Agro Brasil + Sustentável buscam construir uma alternativa oficial para rastreabilidade e certificação, integrando informações socioambientais em uma base pública e com legitimidade do Estado. Se robusta, transparente e reconhecida internacionalmente, essa plataforma pode reduzir a fragmentação regulatória e oferecer uma resposta mais abrangente do que certificações privadas isoladas. O risco, no entanto, é que se torne apenas um selo burocrático, sem aceitação real nos mercados compradores.

A China merece atenção especial nesse debate. Responsável por absorver 58,65% das exportações do complexo soja brasileiro, o país asiático é frequentemente visto como válvula de escape diante de exigências mais rígidas da União Europeia. Mas a realidade é mais complexa. A dependência de um comprador tão concentrado pode reduzir o poder de barganha brasileiro e aumentar vulnerabilidades estratégicas no médio prazo. Além disso, a própria China vem incorporando, ainda que de forma gradual, preocupações ligadas à segurança alimentar, à imagem global de suas cadeias de suprimento e à pressão de investidores internacionais. Ignorar essa dinâmica seria um equívoco.

O futuro da soja brasileira dependerá não apenas da capacidade de atender aos mercados mais exigentes em sustentabilidade, mas também de compreender que mesmo parceiros estratégicos como a China poderão, cedo ou tarde, alinhar-se a esse movimento. O verdadeiro desafio está em construir uma governança que vá além da lógica de nichos certificados e da mera adaptação a exigências externas, para consolidar um modelo nacional capaz de assegurar competitividade, previsibilidade e legitimidade em um mercado global que já não tolera a dissociação entre produção e conservação.

 

[1] Para mais detalhes, leia o texto “Monitoring of the Soy Moratorium through satellite images: Supplementary Material”

 

Referências e leituras indicadas:

CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA - CADE. Nota técnica 18 – SEI_CADE – 1285202 – 087000002702018-72. 2023. Acesso em: 18 ago. 2024.

ESTADÃO. Aprosoja MT estuda denunciar moratória da soja no CADE. Agro Estadão. Acesso em: 18 ago. 2024.

FORBES AGRO. Órgãos do governo divergem sobre moratória da soja, aumentando riscos para tradings. Forbes Brasil, 22 ago. 2025. Acesso em: 11 set. 2025.

GIBBS, H. K.; RAUSCH, L.; MUNGER, J.; SCHELLY, I.; MORTON, D. C.; NOOJIPADY, P.; SOARES-FILHO, B.; BARRETO, P.; MICOL, L.; WALKER, N. F. Brazil’s Soy Moratorium: Supply-chain governance is needed to avoid deforestation. Science, v. 347, n. 6220, p. 377-378, 2015.

MORATÓRIA DA SOJA. Home. Acesso em: 18 ago. 2024.

ROUND TABLE ON RESPONSIBLE SOY (RTRS). Visão geral 2024: adoção global de material certificado RTRS. 15 maio 2025. Acesso em: 11 set. 2025.

 

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GLOSSÁRIO

CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica):

É uma autarquia federal brasileira, vinculada ao Ministério da Justiça, responsável por garantir a livre concorrência no mercado. O CADE tem a função de prevenir e investigar abusos do poder econômico, como cartéis e monopólios, além de analisar fusões, aquisições e outras práticas que possam afetar a concorrência. Suas decisões visam proteger os interesses dos consumidores e assegurar um ambiente de negócios equitativo e competitivo. Além disso, o CADE atua na promoção da cultura da concorrência no Brasil por meio de estudos, pesquisas e ações educativas.

Traders de soja:

Profissionais ou empresas especializadas na compra e venda de soja nos mercados financeiros e físicos. Eles desempenham um papel crucial na cadeia de suprimentos, gerenciando a logística, o armazenamento e a distribuição de soja, além de se envolverem na negociação de contratos futuros para proteger preços e garantir a oferta. Os traders são pontes importantes entre os produtores agrícolas e os mercados consumidores, influenciando tanto os preços no mercado global quanto as estratégias de comercialização.

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