Entendendo a pressão francesa contra o acordo União Europeia-Mercosul
29/11/24 - Leandro Gilio | Marcos Jank | Victor Martins Cardoso
O que está em jogo na negociação entre os blocos e o que incomoda os produtores franceses de carne bovina na concretização de possível acordo
Em carta endereçada ao presidente da Federação Nacional dos Sindicatos de Agricultores da Europa, o CEO global do Carrefour, Alexandre Bompard, provocou intensa reação nos últimos dias ao atacar a imagem da carne bovina brasileira. O executivo do grupo varejista francês alertou sobre um suposto "risco de inundação do mercado francês com carne [proveniente do Mercosul] que não atende exigências e normas" e assumiu uma postura altamente protecionista ao declarar que a rede “não irá comercializar nenhuma carne proveniente do Mercosul”
Em resposta às críticas infundadas, o Brasil, incluindo entidades setoriais, governo e frigoríficos, reagiu com firmeza ao ameaçar um boicote no fornecimento de carne ao grupo Carrefour no Brasil. A pressão surtiu efeito, levando a empresa e seu CEO Global a recuarem por meio da divulgação de comunicados público, reconhecendo que o Brasil “fornece carne de alta qualidade, com respeito às normas e sabor”. No entanto, a controvérsia ultrapassou a disputa com o Carrefour e a adquiriu maior proporção no último dia 26 de novembro, durante votação simbólica do acordo entre a União Europeia e o Mercosul na Assembleia Nacional da França. Na ocasião, deputados franceses intensificaram os ataques à qualidade e aos padrões sanitários da carne brasileira, recusando-se a ratificar o acordo entre os dois grandes blocos. Por isso, é fundamental entender os motivos de tais ataques e o que está em jogo nessa antiga mesa de negociação.
Primeiramente, é importante ressaltar a falta de embasamento do ataque às condições sanitárias e à qualidade da carne bovina produzida no Brasil. Atualmente, o Brasil realiza envios de carne bovina para mais de 170 países, com serviço de inspeção (SIF) amplamente reconhecido no mundo, atendendo aos altos níveis de qualidade de produto para diferentes mercados, aos padrões sanitários e às recomendações da Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA). É estranhíssimo que o CEO global do Carrefour, grande grupo varejista com mais de 1200 lojas apenas no Brasil e que há muitas décadas vende carne brasileira no país e no mundo, desconheça tais fatos. Tal atitude leva a crer que a real motivação por trás desta crise seja dar voz e apoiar explicitamente produtores locais europeus, que estão há mais de duas décadas tentando barrar um acordo comercial entre os dois blocos.
Hoje, as exportações de carne bovina para a União Europeia enfrentam severas restrições, sobretudo devido à existência de cotas tarifárias (TRQ). Esse mecanismo estabelece um limite volumétrico de importação de carne para o bloco dentro de uma tarifa de importação reduzida, chamada de intracota, acompanhada de uma tarifa bem mais alta para toda importação que exceder a cota, chamada de tarifa extracota. As cotas e tarifas relacionadas à importação de carne bovina estão listadas na tabela a seguir, existindo algumas cotas extras concedidas a países específicos. No entanto, destaca-se a grande restrição do mercado europeu, com cotas de importação de aproximadamente 115 mil toneladas, que correspondem a menos de 2% do consumo aproximado de 6,2 milhões de toneladas anuais de carne bovina pelo bloco (USDA, 2024). Em 2024 as importações de carne bovina do Mercosul representam apenas 6% das importações totais de carne bovina da União Europeia e Reino Unido, ao passo que as importações intrabloco respondem por 92% do total importado. Isso mostra que o maior problema dos franceses está na competição dentro da Europa, e não nos baixos volumes oriundos do Mercosul.
Fonte: elaborado pelo Insper Agro Global.
Além de um mercado bastante protegido, agropecuaristas europeus recebem subsídios da Política Agrícola Comum (PAC), programa de auxílio estatal implementado desde 1962 no bloco econômico e que tem os agricultores franceses como principais beneficiários – o que reduz ainda mais a competitividade da carne advinda de outros mercados. Atualmente, os subsídios da PAC passam por reformulações e intencionam incentivar práticas mais sustentáveis de produção, o que também tem contribuído para a onda de insatisfação por parte dos produtores (veja mais em artigo publicado sobre as manifestações agrícolas na europa).
Fonte: OMC (2024). *Cotas abertas a países específicos, que são exceções às cotas comuns. ** A chamada cota Hilton refere-se a carnes consideradas de alta qualidade e que atendem critérios bastante específicos.
Fonte: elaborado pelo Insper Agro Global com base nos dados do Trade Data Monitor e do USDA (2024). *valores percentuais correspondem ao cálculo de CAGR para o período.
As exportações de carne do Mercosul e do Brasil para a União Europeia são decrescentes – em média, decréscimo anual de 1% de 2000 a 2024 (Figura 3).
Fonte: Trade Data Monitor (TDM, 2024). *Queda de 1% anual refere-se ao cálculo de CAGR para o período.
O cenário protecionista da pecuária bovina europeia deve permanecer praticamente inalterado mesmo com a eventual ratificação do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, conforme indicam os termos recentemente negociados. . A Tabela 2 a seguir demonstra que, apesar de a proposta prever maior abertura e cotas preferenciais ao Mercosul, o volume permitido representaria apenas 1,5% do mercado consumidor europeu. Esse percentual, somado à manutenção das restrições e dos elevados subsídios após a ratificação, torna infundado o argumento de uma possível “inundação do mercado” com carne do bloco sul-americano.
Além das barreiras tarifárias e de cotas, o mercado europeu impõe rigorosas restrições técnicas e burocráticas. A extensa legislação e os morosos processos de licenciamento constituem entraves tão significativos que o Brasil frequentemente não consegue utilizar toda sua cota disponível para carnes de alta qualidade (cota Hilton[1]), conforme exemplificado na Tabela 3, para o ano de 2024. Falhas nesse processo e dificuldades de coordenação dificultam o acesso a esse mercado disponível e se apresentam como mais uma das barreiras. Tais questões são um estímulo ainda maior (além da alta demanda) de direcionamento da carne bovina produzida no país para outras regiões, como a China, que atualmente absorve mais de 50% dos embarques de carne bovina do Brasil, liderando entre os destino da região (Figura 3). O Acordo Mercosul-UE tende a facilitar a aprovação de plantas brasileiras de processamento para exportação, por meio de um sistema de pré-listagem (pre-listing), eliminando a necessidade de inspeção individuais das plantas e agilizando a habilitação dos exportadores.
Fonte: Secex (2024). *cota referente ao período de vigência de 1/7/2024 e 30/6/2024
Fonte: Trade Data Monitor (TDM, 2024).
Por fim, os ataques recentes à imagem do setor pecuário brasileiro refletem, essencialmente, a estratégia protecionista de um grupo de interesse (os produtores franceses), apesar do limitado impacto que o acordo comercial teria se implementado. A União Europeia encontra-se atualmente dividida quanto à ratificação do acordo, com alguns países contrários (França e Polônia, por exemplo) e outros favoráveis ao tratado (como Alemanha e Espanha,). Há mais de 20 anos em negociação, o acordo passou por várias fases. Neste momento, existe um otimismo para sua concretização, dada a necessidade da União Europeia em assegurar mercados e minimizar a influência geopolítica e comercial de outas regiões ou países, como a China. Resta saber até que ponto os produtores franceses e movimentos contrários vão conseguir mobilizar forças contra as negociações em curso.
[1] Para se enquadrar na Cota Hilton, a carne bovina deve atender a várias exigências, que envolvem conformação da carcaça; nível de cobertura de gordura; peso; presença de dentes incisivos; cadastro dos animais; certificação da fazenda; regras de abate; e habilitação do frigorífico para exportação para União Europeia.
* Utilize esse material como referência livremente.
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