Uma nova COP, uma nova chance para o Brasil
03/11/25 - Gabriela Mota da Cruz | Marcos Jank
Baixo Carbono | Meio Ambiente | Geopolítica
Uma nova COP, uma nova chance para o Brasil
Em 1992, o Brasil organizou a maior conferência ambiental da história até então. Líderes de mais de 170 países, cientistas, ambientalistas e jornalistas aterrissaram no Rio de Janeiro com otimismo: daria tempo de salvar o planeta, parecia. O país anfitrião acumulava qualidades inspiradoras: biodiverso, abundante, acolhedor e com um discurso afiado sobre desenvolvimento sustentável e energias renováveis.
A ECO92 foi a gênese do que hoje conhecemos como COPs (Conferences of the Parties, ou, em português, Conferências das Partes – as Cúpulas do Clima). Ali nasceu o primeiro grande tratado internacional sobre a contenção de gases do efeito estufa: a Convenção Quadro da ONU sobre Mudança do Clima (UNFCCC), irmã gêmea de mais duas cartas de boas intenções elaboradas no Rio, a Convenção sobre Diversidade Biológica e a Agenda 21. O Brasil saiu da conferência de 1992 com a imagem de nação-chave no debate climático. Afinal, o país que abriga a Amazônia, é atravessado por grandes rios e responde por boa parte da produção de alimentos do mundo não pode ser coadjuvante nesse palco.
Desde então, o Brasil já vestiu muitos figurinos nas COPs: foi herói do mercado de carbono do Protocolo de Kyoto, exemplo de comprometimento com o Acordo de Paris, figurante indesejável das estatísticas de desmatamento ilegal – e agora tenta voltar ao centro da cena como nação que pretende liderar o debate ambiental.
Em 2024, o Brasil atualizou sua promessa climática (a famosa NDC, sigla em inglês para Contribuição Nacionalmente Determinada, em acordo com a UNFCCC), anunciando metas que soam bem em qualquer palco internacional: reduzir entre 59% e 67% das emissões líquidas até 2035. Essas emissões líquidas correspondem ao saldo entre o total de gases de efeito estufa lançados na atmosfera (como dióxido de carbono, metano e óxido nitroso) e o volume retirado do ar por meio de ações de compensação, como a preservação e recuperação de florestas. Também prometeu um teto de emissões para o período de 2025 a 2030, embalado por um novo comitê climático e pela ideia de criar um mercado de carbono.
Novamente anfitrião de uma conferência ambiental – a COP30, que será realizada no mês de novembro em Belém do Pará, no coração da floresta –, o Brasil pode apresentar sinais concretos de mudança, como a redução nas taxas de desmatamento e a reestruturação da fiscalização ambiental. São avanços reais, alcançados muitas vezes com recursos limitados e sob um cenário político e fiscal desafiador. Ainda assim, velhos obstáculos permanecem: a grilagem de terras, a insegurança jurídica no campo e a fragilidade das instituições nas fronteiras agrícolas. A Amazônia, que por anos serviu como paisagem de fundo para os discursos, agora é o palco principal das discussões. E o Brasil, com todas as contradições que o cercam, tenta mostrar que está pronto para um novo ato.
Se o Brasil quiser mesmo cumprir suas metas climáticas, precisa encarar um velho conhecido: o desmatamento ilegal que avança ali onde o Estado não chega. Além de ilegal, a derrubada da floresta vem se mostrando lucrativa e persistente. É o motor de quase metade das nossas emissões de gases do efeito estufa.
Ao contrário do que muitos imaginam, o gado não é o ponto de partida do desmatamento ilegal – é, na verdade, quase o ponto final. Tudo começa com a grilagem de terras públicas: áreas da União são invadidas e apropriadas de forma irregular, por meio de documentos forjados e cercas improvisadas. O poder público muitas vezes nada faz para coibir essas práticas. Depois vem a extração ilegal de madeira nobre, que financia a operação e abre espaço físico na floresta. Só então, com a área degradada, entra o pasto. O boi, nesse cenário, não desmata: ele carimba a posse. O gado é usado para “esquentar” a terra ocupada, criando aparência de uso produtivo onde antes havia apenas vegetação nativa.
Não se trata de bagunça improvisada. Pelo contrário: o desmatamento ilegal é cada vez mais organizado, com direito a planejamento financeiro, segurança armada e até estratégias jurídicas para dar aparência de legalidade ao crime – como registros falsos de posse de terra e documentos ambientais de fachada. Em áreas remotas da Amazônia Legal, grupos criminosos preenchem o vazio deixado pelo Estado com sua própria versão de governança – sem leis, todavia com regras.
A agropecuária aparece como a face visível, mas não deve ser confundida com a motivação central do desmatamento e da grilagem. Afinal, o boi é só a forma mais barata de carimbar a posse da terra, já que não exige custos estruturais altos, bastando alguns animais e pasto. É importante reconhecer que a raiz do problema está no desmonte institucional, na fragilidade da governança fundiária e no enfraquecimento da fiscalização das florestas públicas.
Enquanto o mundo discute emissões, é preciso lembrar que boi não é escapamento. Embora sejam significativas e tenham motivado piadas infames, as emissões de metano produzidas pela eructação (arroto) bovina – resultado natural da fermentação entérica, processo digestivo dos ruminantes – não é comparável à queima de carvão ou diesel das atividades industriais e dos transportes. Além do mais, quando bem manejado, o pasto tem grande potencial para capturar carbono da atmosfera — um dado que quase nunca vai parar nas manchetes.
A pecuária brasileira cumpre um papel essencial: fornece carne e leite a milhões de pessoas, garantindo segurança alimentar e nutricional. Não está isenta de problemas, mas tampouco é sinônimo de ilegalidade. Há experiências concretas de transição produtiva em curso. Um dos exemplos mais emblemáticos é o Protocolo do Boi China, que há cerca de duas décadas regula as exportações de carne bovina para o gigante asiático. Ele estabelece critérios sanitários rigorosos e exige que os animais exportados tenham, no máximo, 30 meses de idade no momento do abate.
Essa exigência acabou puxando uma revolução silenciosa no campo. Para abater bois mais jovens, foi preciso investir em genética, nutrição e manejo de pastagens — o que levou à formação de rebanhos mais produtivos e sistemas mais intensivos. Melhor pasto, melhor gado, menos tempo no curral. O resultado foi triplo: maior produtividade, carne de melhor qualidade e emissões menores de metano por animal, já que o ciclo de vida encurtou. A busca por atender a um protocolo sanitário acabou, sem querer, empurrando a pecuária brasileira para um modelo mais eficiente e com ganhos ambientais reais.
Esse agro que investe em tecnologia, recupera pastagens e adota práticas regenerativas não é promessa – já está em campo. Integra lavoura, pecuária e floresta, reduz emissões, e quer jogar limpo. Mas segue competindo em desvantagem enquanto a terra invadida continuar mais barata que a legalizada – e enquanto o crime organizado seguir um passo à frente das políticas públicas.
Relatórios do Instituto Igarapé mostram que o desmatamento ilegal está cada vez mais conectado ao tráfico de drogas e à criminalidade armada. A floresta virou rota de escoamento, moeda de troca e esconderijo logístico. Em 2022, cerca de 50% das operações da Polícia Federal contra crimes ambientais na Amazônia encontraram vínculos com organizações criminosas.
Combater essas organizações criminosas pede mais do que boas intenções e selos de exportação. Exige inteligência territorial, regularização fundiária, estímulo à produção legal e capacidade institucional. Porque o que está em jogo não é apenas o clima. É o território. É a soberania.
Apesar das dificuldades na preservação das florestas, o Brasil tem uma história de protagonismo — e, por vezes, de contradição — no debate internacional sobre o clima. O enredo começou a ganhar corpo em 1972, na Conferência de Estocolmo, o primeiro grande encontro da ONU dedicado às questões ambientais. Na ocasião, o Brasil adotou uma postura desenvolvimentista, priorizando o crescimento econômico em detrimento da preservação ambiental. Defendia que as nações industrializadas deveriam assumir a responsabilidade pelos danos já causados ao planeta, enquanto os países em desenvolvimento, como o Brasil, deveriam focar em sua industrialização, vista como essencial para o progresso econômico, mesmo que isso significasse postergar preocupações ambientais.
Duas décadas depois, na Eco-92, organizada no Rio de Janeiro, o Brasil demonstrou uma mudança significativa, apresentando uma postura mais conciliadora que buscava aliar desenvolvimento e preservação. Consolidando-se como principal protagonista dos trópicos na pauta ambiental, o país foi palco de importantes acordos internacionais, como a Convenção do Clima e a Agenda 21, que moldaram o debate ambiental por gerações. Em 1997, o Protocolo de Kyoto deu sequência a esse avanço, impondo metas obrigatórias de redução de emissões aos países desenvolvidos, ao mesmo tempo que incentivava o engajamento de países em desenvolvimento, como o Brasil, nesse esforço global.
O país entrou animado no Protocolo de Kyoto, firmado em 1997. Primeiro acordo internacional a estabelecer metas de emissão de carbono, o protocolo acenava para as nações em desenvolvimento com mais incentivos do que cobranças. O Brasil começou bem: foi a primeira nação a ter um projeto aprovado no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), nome técnico do sistema que permitia que países desenvolvidos investissem em projetos de redução de emissões nas nações em desenvolvimento, em troca de créditos de carbono. O projeto-piloto foi implementado em 2007 no aterro de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, onde o gás metano resultante dos resíduos sólidos de um antigo lixão foi capturado para gerar os créditos de carbono – um exemplo simbólico do que poderia ser a nova economia do clima.
Aproveitamos o script com entusiasmo em outras iniciativas – biodigestor e energia de biomassa, entre elas. O governo até constituiu uma autoridade própria para organizar a fila de projetos. Mas o espetáculo de Kyoto logo perdeu público. Com a saída dos Estados Unidos e o enfraquecimento das metas, as promessas do tratado acabaram engavetadas. No entanto, seguimos em cena: sem metas obrigatórias, porém com o discurso ensaiado, misturando soberania, justiça climática e inovação tropical. Em 2015, o Acordo de Paris estipulou que todos – ricos, pobres e emergentes – precisavam estabelecer suas próprias metas climáticas, as NDCs. O Brasil apresentou metas ambiciosas, atualizadas no ano passado.
Entre o final da década passada e os primeiros anos da atual, o Brasil enfrentou desafios significativos na questão ambiental. O desmatamento voltou a subir, a fiscalização perdeu força e o discurso oficial oscilava entre o negacionismo e a minimização dos problemas. Ainda presente nas grandes cúpulas internacionais, o Brasil já não atraía os holofotes como antes e começava a ser percebido como um personagem menos central. Sua reputação internacional, antes aplaudida, perdeu parte do brilho, refletindo as preocupações com a conservação da Amazônia — um tema que segue como peça chave da história climática mundial.
Apesar do cenário adverso, houve resistência institucional. O Plano ABC, criado pelo governo federal em 2010 para promover uma agricultura de baixa emissão de carbono, foi um exemplo real de política pública com resultados concretos: metas superadas, tecnologias difundidas, reconhecimento global. Sua versão atualizada, o Plano ABC+ e o Renovagro, segue como uma vitrine da capacidade brasileira de conciliar produtividade e sustentabilidade. Contudo, ainda há lacunas importantes: o volume de crédito é insuficiente frente ao desafio da transição, e os recursos muitas vezes não chegam aos pequenos produtores – justamente os que mais precisam de apoio para adotar práticas sustentáveis.
Com a chegada da COP29, o Brasil reapareceu com NDC revista, metas absolutas, discurso afinado e disposição para disputar espaço em um cenário de lideranças climáticas desgastadas. Após o evento em Baku, no Azerbaijão, veio o anúncio do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE). Ainda em fase de regulamentação, ele estabelece um teto para emissões e permite que empresas que emitem menos do que o autorizado possam vender esse “excesso” como crédito de carbono. A lógica é simples: quem polui mais, paga; quem investe em soluções mais limpas, ganha. O mercado pode se tornar uma ferramenta poderosa para financiar a transição, inclusive no setor agropecuário, conectando boas práticas sustentáveis a novas fontes de receita.
Enquanto isso, o solo brasileiro dá sinais de que quer cooperar. Estudos do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases do Efeito Estufa (SEEG) indicam que práticas de manejo bem executadas, como a recuperação de pastagens degradadas e o uso de sistemas integrados, vêm contribuindo para o sequestro de carbono no solo. Isso significa que, ao contrário da caricatura que pinta o agro como vilão climático, há um caminho realista – e mensurável – para integrar produção e clima sem abrir mão da segurança alimentar.
ACOP30 será mais do que uma conferência climática. Será um teste diplomático, político e simbólico. O Brasil chega com compromissos relevantes e avanços reconhecidos, mas também com a consciência de que há um caminho a percorrer. Consolidar a redução do desmatamento ilegal, ampliar o financiamento climático, fortalecer a regularização fundiária e proteger populações vulneráveis seguem como prioridades fundamentais. A floresta, que por muito tempo foi coadjuvante, agora quer ser protagonista – e já começou a desempenhar esse papel.
Ainda na preparação do evento, vieram os primeiros desafios. Denúncias sobre licitações, obras emergenciais e estradas abertas em áreas sensíveis chamaram atenção. São alertas importantes, que mostram o quão difícil é alinhar ambição, execução e governança em um país de dimensão continental. Os melhores esforços esbarram em entraves antigos, como a ocupação desordenada do território e o avanço de atividades ilegais que ameaçam a autoridade do Estado, dificultando que os resultados positivos ganhem escala.
Apesar das dificuldades, o Brasil tem conquistas notáveis a apresentar. Leis ambientais consistentes, metas climáticas firmes e experiências concretas de produção sustentável ajudam a reposicionar o país no debate global. A agropecuária vem dando sinais de transição: sistemas integrados, manejo regenerativo, tecnologias tropicais e iniciativas como o mencionado Protocolo do Boi China. O desafio agora é ampliar a escala, garantir apoio técnico e financeiro e incluir quem ainda está à margem da transformação.
A COP30 pode marcar um novo capítulo — com o Brasil combinando discurso, política e prática. Belém, apesar dos problemas logísticos que se anunciam, receberá lideranças globais, investidores e sociedade civil para um evento que levanta a expectativa de que o país avance com consistência e continuidade. Porque o planeta já conhece a história e torce, desta vez, para que ela ganhe um novo desfecho – à altura do palco que escolhemos.
Leia Também
Artigos em jornais e revistas | Insper Agro Global | 25/09/25
Exportações do agronegócio brasileiro crescem 1,5% em agosto apesar das tarifas americanas
Valor embarcado para os Estados Unidos teve queda de 17,6% em comparação com igual período de 2024, mas demanda crescente em outros mercados compensou a baixa.
Artigos em jornais e revistas | Insper Agro Global | 24/09/25
Brasil e as COPs: nosso legado e para onde vamos
Uma reflexão sobre o legado nacional nas negociações climáticas e os desafios estratégicos rumo à COP30.
Artigos em jornais e revistas | Insper Agro Global | 11/09/25
Depois da Moratória: como garantir que a soja brasileira não seja associada ao desmatamento?
Entre a experiência de um pacto voluntário e a exigência de novas formas de governança socioambiental
Artigos em jornais e revistas | Insper Agro Global | 16/07/25
Opinião: Trump ataca o Brasil mirando a China
Reflexões sobre a carta de Donald Trump, que utiliza a majoração das tarifas de importação impostas unilateralmente ao Brasil para obter um rearranjo estratégico nas Américas, contra a China