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Novas políticas de transição energética no Brasil devem destacar o papel da bioenergia

05/09/24 - Leandro Gilio | Gabriela Mota da Cruz

Bioenergia | Baixo Carbono | Meio Ambiente

Novas políticas de transição energética no Brasil devem destacar o papel da bioenergia

As recentes aprovações de planos e regulamentações para a transição energética no Brasil sinalizam um avanço em direção ao fortalecimento da bioenergia. Contudo, desafios consideráveis persistem para que o setor alcance seu pleno potencial.

O governo federal, por meio do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), aprovou em 26 de agosto a Política Nacional de Transição Energética (PNTE). Em cerimônia que contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do presidente do Conselho, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, as autoridades destacaram o potencial estimado de o Brasil atrair cerca de “R$ 2 trilhões em investimentos” para o setor, enfatizando que o país não poderia “jogar essas oportunidades fora”.

Tal anúncio segue-se a outras propostas em tramitação e em fase de aprovação, como o PL 3027/2024, que instituiu o Marco Legal do Hidrogênio (Lei 14.948/24), e o PL 528/2020, conhecido como PL dos “Combustíveis do Futuro”. Este último dispõe sobre a possibilidade de aumento da mistura de biocombustíveis à gasolina e ao diesel, além de tratar dos programas nacionais para combustível sustentável de aviação (SAF), diesel verde (HVO), biometano e, ainda, da captura e estocagem de gases de efeito estufa.

Esses planos e projetos são de extrema relevância no atual contexto global de busca por energias limpas, especialmente considerando o grande potencial do Brasil, que dispõe de abundantes recursos naturais e possui larga experiência na produção em grande escala de bioenergia.

Primeiramente, o Brasil encontra-se em uma faixa tropical, caracterizada por alta insolação, o que favorece o processo de transformação e reserva energética pelas plantas, via fotossíntese. Além disso, o país possui grande disponibilidade de área, bem como técnicas agrícolas de produção avançadas que permitem duas ou três safras anuais, o que não é possível em países de clima temperado.

Desde a década de 1970, com o programa nacional do álcool (Proálcool), o país promove políticas nessa área. Após um crescimento inicial baseado em forte intervenção estatal, a atividade agroenergética passou por ciclos de altas e baixas, sofrendo grandes mudanças institucionais e conjunturais, que exerceram forte influência sobre seu desempenho ao longo do tempo.

Na década de 1980, após o sucesso inicial do Proálcool, impulsionado por grandes incentivos do governo, ocorreu um ciclo de estagnação e declínio. A década de 1990, por conseguinte, foi marcada por uma drástica redução nas vendas de veículos movidos a etanol e pela desregulamentação do mercado desse combustível, com a revogação formal do Proálcool. Apesar da crise e do fechamento de diversas usinas, o setor canavieiro manteve-se ativo nesse período, graças a aumentos graduais de misturas de etanol à gasolina e ao avanço das exportações de açúcar.  

Após a década de 1990, houve um período de renascimento do uso do etanol como combustível no país, em um período marcado pelo advento dos veículos flex-fuel (bicombustíveis), pela entrada de investimentos internacionais e pelo crescimento da cogeração energética a partir da queima de bagaço de cana, com forte crescimento da demanda interna. Esse cenário foi acompanhado pela perspectiva de criação de um mercado global de biocombustíveis, com o comprometimento de vários importantes consumidores de combustíveis fósseis, como os Estados Unidos, a União Europeia e a China, com acréscimos de etanol à gasolina e incrementos no uso de biodiesel — que acabou não se concretizando.

Na mesma rota, em 2004, teve início o Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB). O biodiesel foi introduzido na matriz de combustíveis líquidos no país, começando pela adição do combustível ao diesel convencional, a fim de evitar a necessidade de adaptações tecnológicas nos motores da frota brasileira.

A partir do final da década de 2000, iniciou-se um período de crise na atividade agroenergética, motivada por fatores como a política de controle de preços da gasolina e diesel (desonerações de combustíveis fósseis como medida de controle inflacionário); a baixa previsibilidade de políticas energéticas; os incentivos preferenciais governamentais a outras fontes de energia; as restrições à aquisição de terras por estrangeiros, que limitaram investimentos produtivos no setor, entre outros aspectos. No entanto, parte da indústria de biocombustíveis mostrou resiliência diante desse cenário adverso em termos de incentivos econômicos. Mais recentemente, foi instituída a Política Nacional dos Biocombustíveis (RenovaBio).

Até o momento, descrevemos sucintamente o histórico no Brasil dos biocombustíveis de 1ª geração, aqueles derivados de tecnologias conhecidas há décadas e obtidos diretamente de culturas agrícolas consolidadas, como a cana-de-açúcar, milho e a soja, também utilizadas em cadeias alimentares. Apesar do otimismo inicial com os biocombustíveis de 1ª geração como alternativa viável aos combustíveis fósseis, até a primeira década dos anos 2000, a realidade que se impôs no período seguinte foi oposta, inclusive com movimentos contrários e questionadores, como a linha comumente denominada de “food vs fuel” — Ver Agro In Data — e a preferência (pressão), principalmente europeia e chinesa, pela eletrificação veicular. 

No que tange à questão interna, políticas públicas voltadas à energia adotadas pelo país nas últimas duas décadas muitas vezes falharam em oferecer incentivos adequados ao maior desenvolvimento na área. Isso fez com que os biocombustíveis sempre estivessem em um nível subótimo de utilização no país, desconsiderando-se as externalidades positivas associadas ao desenvolvimento do setor, como a oportunidade de geração de renda, empregos e desenvolvimento tecnológico, bem como os esforços de redução nas emissões de carbono. Ou seja, muitas vezes já “jogamos a oportunidade fora”.

As novas políticas podem inaugurar um capítulo diferente nessa história, valorizando as novas possibilidades energéticas, como os biocombustíveis de 2ª geração — oriundos de diversas fontes de biomassa celulósicas —, o diesel verde produzido por hidrotratamento (HVO) e outras rotas tecnológicas, além de estudos para uso viável de hidrogênio verde e combustíveis sustentáveis para aviação (SAF). Essas novas tecnologias ampliam as possibilidades do mercado de biocombustíveis, permitindo maior eficiência em termos de emissões, maior escala internacional e contribuições significativas para a descarbonização. Por isso, devem ser incentivadas por meio de instrumentos adequados.

As leis e políticas em discussão propõem a regulamentação necessária para a produção e uso dos combustíveis e preveem pontos importantes, como incentivos fiscais para pesquisa e desenvolvimento; estímulo à infraestrutura e logística; incentivos à exportação; e redução de contribuições sociais, entre outros aspectos relevantes.

No entanto, para estimular efetivamente o setor de geração de bioenergia, especialmente considerando o caminho de novas rotas tecnológicas, é preciso superar alguns desafios. Embora o Brasil conte com uma matriz energética limpa, com 45% de sua composição proveniente de fontes renováveis — um patrimônio construído ao longo da história brasileira, com destaque para o período entre as décadas de 1960 e 1970 —, o país entra no jogo com um certo atraso no que se refere às novas rotas tecnológicas. Além disso, os mecanismos de incentivo anunciados parecem, por vezes, insuficientes ou ainda vagos quando comparados aos vultosos investimentos realizados por outros países — Ver artigo publicado pelo Insper Agro Global.

Outro ponto crucial diz respeito à rigidez dos padrões de regulamentação das novas fontes energéticas. No caso do hidrogênio verde, um dos aspectos mais críticos é o limite de emissões de carbono permitido, que é de até 7 kg de CO₂e por kg de hidrogênio produzido, bem acima dos padrões internacionais, como os da União Europeia, que exige menos de 4,4 kg de CO₂e por kg de hidrogênio. Esse tipo de discrepância pode prejudicar a competitividade da energia verde brasileira no mercado global, podendo ser considerada menos sustentável em comparação com a produzida em outras regiões.

Para incentivar o desenvolvimento dos biocombustíveis de segunda geração, é crucial que as regras institucionais sejam claras e estáveis, oferecendo segurança jurídica para os investidores. Um ordenamento jurídico bem definido, que abranja todo o ciclo de produção — desde o campo até a indústria e a entrega ao consumidor, seja no mercado interno ou externo — é essencial para o sucesso do setor. Nesse contexto, a logística de transporte desempenha um papel central, especialmente considerando que boa parte desses combustíveis será destinada à exportação. Portanto, a preparação da infraestrutura portuária e o planejamento adequado do transporte são fundamentais. Um exemplo dessa necessidade é o hidrogênio verde, cuja regulamentação atual ainda não esclarece de forma suficiente as diretrizes para armazenamento e transporte, criando incertezas para o setor.

Portanto, as novas políticas e leis de incentivo aprovadas constituem um marco importante na trajetória do país rumo a uma economia de baixo carbono. No entanto, embora apresentem grandes oportunidades e alto potencial de produção, os desafios não podem ser ignorados. Serão necessários investimentos substanciais, a adoção de padrões mais rigorosos de emissões e o fortalecimento dos incentivos governamentais para que o Brasil consiga, de fato, se posicionar como líder global no mercado bioenergia verde.

 

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