Seguro rural é essencial para a sustentabilidade dos negócios no campo, mas sua expansão exige mudanças urgentes
A frase de que o “seguro rural brasileiro é ruim” passou a circular com naturalidade em discursos oficiais e análises apressadas. Ela soa simples, mas esconde um problema mais profundo, desloca o foco do desenho institucional e da infraestrutura de dados para o bode expiatório mais fácil, o próprio seguro. Quando se olha com um pouco mais de distância, o quadro é outro. O que está em crise não é a ideia de seguro rural, nem o mecanismo de subvenção ao prêmio, mas a base informacional sobre a qual se tenta construir um mercado que hoje cobre algo entre 10% e 15% da área cultivada, contra cerca de 60% nos Estados Unidos, apesar de modelos de subsídio formalmente semelhantes.
Em 2024, a área segurada recuou de aproximadamente 14 milhões para 7 milhões de hectares, um colapso da ordem de 50%. Não foi uma súbita perda de interesse do produtor, tampouco uma rejeição ao instrumento em si; foi o resultado direto de cortes orçamentários no Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR) e de um ambiente de crescente incerteza na precificação, em grande medida alimentado pela escassez de dados confiáveis de produtividade e clima em nível de fazenda. À medida que o orçamento oscila e a informação continua rasa, o seguro passa a ser criticado por aquilo que não tem condições materiais de entregar.
Mercados maduros lembram constantemente que seguro é, antes de tudo, gestão de informação. Nos Estados Unidos, o produtor que deseja acessar o programa federal precisa entregar, ano após ano, o histórico de sua produção por talhão, o chamado Actual Production History (APH). Esses registros alimentam um banco nacional administrado pela Risk Management Agency (RMA/USDA), no qual cada fazenda carrega uma “memória estatística” própria. Tarifa, cobertura e desenho de produto são função dessas informações.
No Brasil, o cenário é quase o inverso. A produtividade esperada da lavoura segurada é frequentemente derivada de estatísticas municipais do IBGE ou de estimativas da Conab. São dados úteis para abastecimento e planejamento macroeconômico, mas frágeis para discriminar risco em nível de propriedade. Um município pode apresentar média de 60 sc/ha de soja, construída a partir de fazendas que colhem 40 sc/ha e outras que colhem 80 sc/ha; na ausência de dados individualizados, o atuário é obrigado a tratar todos como se fossem médios. O produtor eficiente se vê pagando por uma assimetria que não criou; o produtor em área marginal é beneficiado por uma tarifa que não reflete seu risco real. Com o tempo, a seleção adversa faz o resto: quem tem desempenho acima da média tende a sair, quem tem desempenho abaixo tende a ficar.
O resultado aparece na sinistralidade. Na última década, o setor arrecadou algo em torno de R$ 14 bilhões em prêmios e pagou aproximadamente R$ 40 bilhões em indenizações. Essa conta só fecha com forte apoio público e com retração de oferta nas safras subsequentes, justamente quando o produtor mais precisa de proteção. Não é que o seguro “não funcione”; é que ele está tentando fazer gestão de risco sofisticada com uma infraestrutura de dados que não acompanha nem o estágio tecnológico do campo, nem o tamanho do agronegócio brasileiro.
Dentro da porteira, o país opera máquinas conectadas, sensores, imagens de satélite e softwares de gestão que permitem monitorar, quase em tempo real, o que acontece em cada talhão. Estimativas apontam que mais de 70% dos médios e grandes produtores utilizam hoje alguma ferramenta digital de manejo, de mapas de produtividade a meteorologia de precisão. Fora da porteira, porém, a política agrícola e o seguro continuam trabalhando com dados agregados, cadastros incompletos e séries históricas defasadas.
Essa dicotomia cria um paradoxo incômodo. A informação existe, é produzida diariamente pelo próprio sistema produtivo, mas não encontra canais claros, seguros e bem regulados para alimentar a modelagem de risco público e privado. Os produtores, cooperativas e empresas de tecnologia para gestão de fazenda detêm um acervo de dados de produtividade, manejo e clima que poderia melhorar significativamente a tarifação, mas, na prática, permanece confinado a silos privados, por falta de incentivos, de padrões de interoperabilidade e de uma política de governança de dados que dê segurança jurídica a todos os envolvidos.
Enquanto isso, o PSR oscila. Em anos de maior aporte, como 2020 e 2021, a área segurada sobe e se aproxima de 17% da área de grãos; em anos de corte, como 2023 e 2024, cai novamente para patamares próximos de 8–10%. O programa reage ao orçamento, mas não consegue sair do lugar em termos de desenho informacional. Gasta-se com prêmio, mas não se exige, como contrapartida, o tipo de dado que tornaria esse gasto mais inteligente no ciclo seguinte.
Uma leitura apressada poderia concluir que o problema é o subsídio em si. Mas a comparação internacional sugere outra coisa. Países que hoje exibem alta penetração de seguro rural, Estados Unidos, Canadá e Espanha, também operam com modelos subsidiados. A diferença está menos no princípio do apoio público e mais na previsibilidade e na sofisticação da contrapartida informacional.
O PSR, apesar das críticas legítimas, mostrou-se capaz de alavancar o mercado quando contou com orçamento estável. Em 2021, com cerca de R$ 1,2 bilhão em subvenção, foram protegidos mais de R$ 60 bilhões em valor segurado e o número de apólices subvencionadas ultrapassou 200 mil. O desenho básico, apoio ao prêmio, oferta por seguradoras privadas, supervisão estatal, dialoga com as melhores práticas internacionais. O que falta é tratá-lo como política de Estado, vinculada a um esforço deliberado de construção de base de dados, e não como rubrica anual ajustável a cada aperto fiscal.
Dizer que o seguro rural é “ruim” porque depende de subvenção é ignorar que essa dependência é a regra, não a exceção, em mercados complexos de risco climático. O que realmente difere o Brasil dos casos bem-sucedidos é que, lá fora, cada dólar de subsídio traz em troca um fluxo de dados: sobre produção, perdas, práticas de manejo. Aqui, o subsídio muitas vezes financia uma apólice que nasce e morre sem deixar rastro estatístico minimamente aproveitável para a calibragem futura.
Nos últimos anos, o seguro paramétrico ganhou espaço no debate nacional como alternativa capaz de reduzir custos operacionais e tornar o sistema mais ágil. Em tese, faz sentido: ao vincular a indenização a um índice mensurável, chuva, temperatura, índice de vegetação, elimina-se grande parte da subjetividade da regulação de sinistro. Em países que investiram décadas em redes meteorológicas densas e séries históricas contínuas, com sistemas de produção homogêneos, esse modelo cumpre um papel.
No Brasil, porém, a realidade é mais dura. A densidade de estações do INMET nas zonas rurais está aquém das recomendações internacionais, especialmente em áreas de fronteira agrícola como o Matopiba, justamente onde o risco de produtividade é mais volátil: estudos comparativos indicam desvio padrão de produtividade de soja acima de 20% em algumas dessas regiões, contra algo em torno de 7% a 10% em médias nacionais norte-americanas. Quando o índice é medido a dezenas de quilômetros da lavoura, o risco de base se torna inescapável: pode chover na estação e faltar chuva na fazenda, ou o inverso, minando a credibilidade do produto. E não se enganem, os dados de sensoriamento remoto, modelos agroclimáticos, e outros, dependem dos mesmos dados para serem calibrados ao contexto local, portanto, as diferenças ainda permanecem, embora atenuadas.
A tecnologia está disponível, os instrumentos financeiros também, mas esbarram na mesma pedra fundamental: a falta de séries históricas consistentes, de malha observacional adequada e de dados de campo suficientes para calibrar índices com segurança. Sem resolver esse déficit, o paramétrico corre o risco de ser vendido como “bala de prata” e, na prática, apenas expor ainda mais o desencanto com o seguro.
Do ponto de vista econômico, a fragilidade informacional se traduz em concentração e em custos elevados. A área segurada brasileira está fortemente focada em poucas culturas, soja, milho e trigo respondem por mais de 80% do valor segurado, e em algumas regiões: Sul e parte do sudeste e centro-oeste. Culturas de alto valor agregado, como frutas, hortaliças e segmentos regionais, permanecem à margem menos por falta de demanda e mais por ausência de séries mínimas que permitam precificar esses riscos sem prêmios proibitivos. Em paralelo, a carteira como um todo sofre com uma sinistralidade média alta, alimentada por eventos climáticos severos e pela incapacidade de distinguir o “bom risco” do “mau risco” com base em evidência.
Da perspectiva das seguradoras e resseguradoras, o quadro brasileiro, visto de um escritório em Zurique ou Londres, é o de um país sem “verdade única” estatística: duas fontes oficiais de safra com metodologias distintas, falhas em séries meteorológicas, lacunas em dados de perdas e uma base produtiva cuja variabilidade intra-municipal é majoritariamente desconhecida. A resposta racional a esse tipo de incerteza é cobrar mais caro, restringir áreas, limitar culturas. Do lado do produtor, a leitura é oposta: o prêmio é alto, a compreensão do cálculo é baixa, a percepção de justiça, limitada. A desconfiança se retroalimenta.
Os exemplos internacionais sugerem que há um caminho possível, mas ele não é curto nem glamoroso. Nos Estados Unidos, o APH foi sendo consolidado ao longo de décadas. No Canadá, as seguradoras públicas provinciais armazenam, talhão a talhão, as produtividades dos produtores que participam dos programas; esses dados voltam para o próprio produtor, que pode comparar seu desempenho com a média da região, e informam a política agrícola. Na Espanha, a centralização das apólices no consórcio Agroseguro criou, por desenho, um banco nacional único de riscos e sinistros, alimentado por normas de peritagem altamente padronizadas.
O Brasil tem, em menor escala, peças que poderiam compor algo semelhante: a base do Proagro, com décadas de registros de perdas (mas necessitando de um “pente fino”); o Atlas do Seguro Rural, com dados abertos das apólices subvencionadas; o Cadastro Ambiental Rural (CAR), com geometrias de propriedades; a malha de estações meteorológicas públicas e privadas; os dados que dormem em produtores cooperativas, indústrias de insumos e empresas de tecnologia. O que falta é a decisão política de organizar essa arquitetura, com regras claras de governança, incentivos robustos para o compartilhamento e um horizonte de longo prazo em que dados não sejam vistos como subproduto, mas como ativo central de política pública.
Dizer que o seguro rural brasileiro é “ruim” é, no limite, confundir sintoma com causa. O que existe hoje é um mercado parcialmente desenvolvido, concentrado, dependente de subsídio e submetido a choques fiscais e climáticos que qualquer sistema frágil teria dificuldade em absorver. A diferença é que, aqui, se cobra do seguro a performance de um sistema que ainda não construiu os fundamentos informacionais necessários.
A baixa penetração em área, a relação desequilibrada entre prêmios e indenizações, a retração recente da cobertura, a comparação com mercados que exigem contrapartidas informacionais em troca de cada dólar de subsídio, apontam na mesma direção. O problema central não é a escolha entre modelo X ou Y, nem a discussão abstrata sobre o “tamanho adequado” do Estado. É a decisão prática de tratar dados agrícolas como infraestrutura estratégica, à altura de estradas, armazéns e crédito.
Enquanto essa decisão não for tomada, seguiremos num ciclo previsível: anos bons aliviam a pressão, anos ruins reacendem a crítica, cortes orçamentários interrompem trajetórias de expansão, e a frase “o seguro rural brasileiro é ruim” continuará a circular como diagnóstico fácil. O caminho para sair desse círculo passa por uma mudança mais silenciosa e exigente: construir, paciente e sistematicamente, a base de informação que permitirá, então, exigir mais do seguro, e com razão.
Sobre o autor:
Daniel Miquelluti é cofundador e Head de Novos Mercados da Picsel, insurtech especializada em seguros agrícolas. Engenheiro Agrônomo com mestrado em Estatística Experimental e doutorado em Economia Aplicada na Esalq/USP, atua há mais de uma década no desenvolvimento de soluções inovadoras em seguro rural.
*O texto acima é de responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, uma opinião do Insper Agro Global.
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