Alimentos, combustíveis e o futuro: os biocombustíveis na era da eletrificação
11/11/24 - Mateus Schreiner Garcez Lopes
Baixo Carbono | Bioenergia | Imagem e Comunicação | Meio Ambiente | Tecnologia
Wenderson Araújo/Trilux - Sistema CNA/Senar
Os biocombustíveis sofrem diversas críticas globalmente, mesmo diante da necessidade de ampliação da transição energética para fontes renováveis e de menor emissão. Mas esses questionamentos, hoje, são realmente válidos?
Em seu influente artigo "The Nonsense of Biofuels" (em tradução livre, “O Absurdo dos Biocombustíveis”), o laureado com o Nobel e diretor do Instituto Max Planck, Hartmut Michel, criticou os biocombustíveis, moldando opiniões nomes influentes no mundo, como Vaclav Smil e, mais recentemente, Bill Gates, no livro "How to Avoid a Climate Disaster" (Como Evitar um Desastre Climático). Os principais argumentos de Michel contra os biocombustíveis foram:
• A baixa eficiência de conversão de energia (MJ por hectare) dos biocombustíveis em comparação com os painéis solares.
• O enorme uso de terra necessário para os biocombustíveis, o que leva a uma competição direta com a produção de alimentos.
Esses pontos alimentaram o debate contínuo do "food vs fuel" em que frequentemente associam a produção de biocombustíveis, especialmente o etanol, ao desmatamento de florestas tropicais e a competição pelo uso da terra, em uma decisão entre produzir combustíveis ou alimentos (Veja mais sobre esse debate no texto publicado no Agro In Data). Esses argumentos têm uma grande influência nos debates de políticas públicas no Hemisfério Norte, especialmente na Europa e no Japão.
Recentemente, publicamos um estudo/artigo científico (referência disponível ao final desse texto) que oferece uma perspectiva tecnológica sobre o setor de biocombustíveis no Brasil, focando especificamente no etanol de cana-de-açúcar. Alguns dos principais contra-argumentos à posição de Michel são:
• Produtividade Agrícola Tropical: Culturas tropicais como a cana-de-açúcar, cultivada no Brasil, apresentam uma produtividade muito superior às estimativas feitas para climas temperados, que serviram de base para os cálculos de Michel e Smil. Além disso, o uso de resíduos das culturas para a produção de etanol de segunda geração ou biometano aprimora ainda mais a eficiência.
• Além do Cálculo em megajoules (MJ): A produção de energia da cana-de-açúcar não pode ser avaliada unicamente em megajoules (MJ), pois ela gera etanol e açúcar (energia e alimento). As moléculas de carbono, hidrogênio e oxigênio presentes no etanol e outros biocombustíveis possibilitam aplicações que hoje vão além dos veículos leves, como combustíveis sustentáveis para setores como marinha (Bunker) e aviação (SAF), polímeros e outros setores de difícil descarbonização, onde a eletrificação é hoje considerada inviável (leia mais em artigo publicado pelo Insper Agro Global). Além disso, o açúcar é uma matéria-prima valiosa para a biotecnologia, com o potencial de produzir produtos químicos, fármacos e, entre outros gerando produtos como alimentos de alto valor proteico para descarbonizar, inclusive, a pecuária. Essa integração complexa de alimentos, energia e materiais é conhecida como IFEMS (Sistemas Integrados de Alimentos, Energia e Materiais).
• Sistemas de Carbono Negativo: Tecnologias emergentes, como BECCS (Bioenergia com Captura e Armazenamento de Carbono), biochar e intemperismo de rochas, podem ajudar os sistemas de biocombustíveis a criar pegadas de carbono negativas. Esses sistemas poderiam se tornar sumidouros de carbono altamente eficientes, apoiando a produção de biocombustíveis, a segurança alimentar e a descarbonização da atmosfera. Com as políticas corretas, os biocombustíveis poderiam ser redirecionados para a produção de alimentos durante escassez ou alocados para produtos de maior valor durante safras abundantes. Isso garantiria um sistema alimentar e energético resiliente.
• Perspectiva para 2050: Até 2050, espera-se uma rede energética amplamente eletrificada e de baixo carbono. Assim, os investimentos marginais em energia solar podem gerar retornos decrescentes em termos de mitigação de CO2, enquanto os biocombustíveis ainda terão um grande potencial de descarbonização, especialmente em setores difíceis de descarbonizar, como aviação, polímeros e navegação.
• Uma Nova Métrica – Densidade de Descarbonização (DD): Em vez de usar MJ por hectare como única métrica de comparação, propomos a "densidade de descarbonização" (DD). Essa métrica compara os sistemas de produção com base no seu potencial de descarbonizar diferentes setores. Nosso estudo mostrou que as futuras biorrefinarias poderiam aumentar sua DD de 20 tCO2/ha para 145 tCO2/ha, podendo chegar a 290 tCO2/ha com avanços agrícolas. Em comparação, espera-se que os painéis solares no Brasil atinjam 42,5 tCO2/ha até 2050, mesmo com as novas tecnologias solares.
O objetivo não é afirmar que os biocombustíveis são melhores que os painéis solares, mas demonstrar que ambos são complementares na transição de longo prazo para um sistema energético descarbonizado. Soluções locais como os biocombustíveis podem ter um impacto global e precisam ser cuidadosamente consideradas para promover uma transição energética inclusiva. Em vez de deixar que preconceitos ditem a política, devemos nos manter abertos a analisar diversas soluções à medida que as inovações continuam a evoluir, especialmente considerando aspectos regionais.
Embora Hartmut Michel, Smil e Bill Gates sejam visionários, ninguém pode compreender totalmente todos os sistemas de descarbonização e seus contextos específicos. Os formuladores de políticas, que geralmente não possuem a profundidade desses pensadores, estão ainda menos preparados para determinar quais tecnologias conduzirão a transição energética. Em vez disso, em minha opinião, as políticas devem se concentrar em metas de redução de emissões e permitir que o mercado e os inovadores implantem os caminhos mais eficazes. Até o momento, o etanol e a eletrificação surgiram como líderes, e não competidores, nessa jornada em direção a um futuro sustentável.
Referências e leituras indicadas:
Sobre o autor:
Mateus Schreiner Garcez Lopes
Diretor Global de Transição Energética e Investimentos na Raízen, membro do conselho da Iogen Energy Corporation, empresa canadense de bioenergia, e da Carbios, líder mundial em reciclagem bioquímica na França. Vice-presidente do conselho da Associação Brasileira de Bioinovação (ABBI) e membro do Comitê Consultivo da MIT Energy Initiative.
O texto acima é de responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, uma opinião do Insper Agro Global.
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