ECONOMIA E COMÉRCIO INTERNACIONAL
Qual é o papel da América Latina no fortalecimento da segurança alimentar?
15/10/24 - Victor Martins Cardoso
Comercio Internacional | Desenvolvimento Social | Geopolítica | Segurança Alimentar
canva.com
Sendo a maior região exportadora líquida de alimentos no mundo, a América Latina desempenha papel ímpar no fornecimento de alimentos global.
Nos últimos anos, a segurança alimentar tornou-se um tema central entre lideranças globais, impulsionado pela crise econômica decorrente da pandemia de Covid-19, pelos conflitos geopolíticos e eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes, que resultaram em retrocessos nos índices de fome e desnutrição. Houve um incremento de mais de 152 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar entre 2019 e 2020, segundo estimativas da FAO[1].
Há no mundo uma crescente preocupação com a maior frequência desses eventos e seus impactos na segurança alimentar. A retração econômica provocada pela pandemia dificultou o acesso a alimentos, especialmente em países de baixa renda mais vulneráveis às crises alimentares. Cadeias alimentares globais foram impactadas, o que causou uma escalada nos preços dos alimentos, agravada pela invasão russa à Ucrânia, que interrompeu o escoamento de grãos russos e ucranianos para regiões de alta insegurança alimentar, como Oriente Médio e Norte da África (ver “A crise da Ucrânia e a nova geopolítica do agro global”). Eventos climáticos extremos, como elevação de temperatura e irregularidade hídrica, prejudicaram a produção agrícola, dificultando o combate à fome e à desnutrição. E esses eventos não são mais episódios pontuais. Portanto, a expectativa é de que esse cenário global de incertezas perdure pelos próximos anos.
Nesse contexto, o comércio internacional surge como uma ferramenta importante para mitigar esses riscos à segurança alimentar, conectando sistemas agroalimentares globais e movendo alimentos de regiões superavitárias para deficitárias. Um comércio alimentar eficiente pode melhorar a oferta, a qualidade e a diversidade dos alimentos, suavizando os efeitos de choques adversos como os mencionados.
A América Latina tem um papel crucial nesse cenário, sendo a maior exportadora líquida de alimentos do mundo, com US$ 170,6 bilhões exportados, em 2023. E a tendência é que essa posição se fortaleça nos próximos anos. Segundo o relatório OECD-FAO Agricultural Outlook 2024-2033, o superávit comercial de produtos agrícolas latino-americanos deve crescer 26% até 2033. Além disso, a expectativa é de que sua participação nas exportações de alimentos como soja, milho, açúcar e carne bovina aumente nos próximos dez anos.
A região possui vastos recursos naturais. Seus 34 países somam 2 bilhões de hectares, com 38% destinados à agropecuária (9,5% agricultura e 28,5% pecuária) e 46% cobertos por florestas. A região também concentra 30% da precipitação global e gera 33% da água do mundo, o que a torna uma grande reserva de terras aráveis. No entanto, por muito tempo, isso não se traduziu em alta produção e exportação de alimentos.
Durante a maior parte do século XX, a América Latina manteve-se fechada ao comércio internacional, especialmente no setor alimentício. A baixa produtividade agrícola e a limitada abertura comercial impediam os produtores de expandir suas atividades. Porém, a partir dos anos 1950, grande parte dos países da região passaram a investir em políticas públicas de incentivo a pesquisa e desenvolvimento para agropecuária, adotando práticas que incrementassem a produtividade agrícola, desenvolvendo técnicas mais adaptadas às condições naturais da região, bem como a evolução no uso de sementes geneticamente modificadas e insumos mais avançados. Como foi posteriormente chamada, a “Revolução Verde” na América Latina criou as bases para o grande crescimento da produção agropecuária nas últimas décadas. Somente nos anos 1990, quando diversos países da região realizaram reformas macroeconômicas estruturais e abriram seus mercados para o comércio internacional, que a América Latina pôde se consolidar como a maior região exportadora líquida de alimentos do mundo.
Essa posição vem se fortalecendo principalmente a partir do início dos anos 2000, período em que houve um aumento expressivo da demanda chinesa e asiática por alimentos. A região saiu de uma balança comercial agropecuária extra-bloco equivalente à US$ 26,5 bilhões para alcançar o valor de US$ 217,7 bilhões, em 2023, o que significou um crescimento anual médio de 9% nesse período de mais de vinte anos. A América Latina, portanto, posicionou-se como um ator global chave no comércio de alimentos, não apenas ao promover maior disponibilidade de alimentos para outras regiões do mundo, mas também ao contribuir para a estabilidade de preços.
Além disso, a sua grande abrangência territorial significa uma grande diversidade de produtos. Entre os alimentos presentes na pauta exportadora da região estão grãos, oleaginosas, frutas, carnes e pescados. O complexo soja (grão, óleo e farelo) destaca-se por ter sido o produto mais exportado desde 2000, crescendo a um ritmo galopante de 8,9% ao ano e atingindo o valor de US$ 80 bilhões, no ano passado. Em seguida, produtos como carnes (+9% a.a) e frutas (+7,6% a.a), representam uma fatia importante dos alimentos vendidos pela América Latina. As exportações de outros alimentos, como pescados (+6,2% a.a), açúcar (+6,5% a.a), milho (+13% a.a) e café (+5,7% a.a), mostram também um crescimento significativo, o que reitera o papel crucial da região para a segurança alimentar global.
Essa diversidade apenas pôde ser alcançada devido à heterogeneidade da produção alimentar na região. Enquanto o Cone Sul, sub-região composta por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, tornou-se um exportador de commodities como soja, milho, trigo e carnes, outras sub-regiões concentraram esforços em especialidades locais de alto valor agregado. Essas especialidades incluem frutas e vegetais tanto frescos quanto processados, bebidas alcoólicas, como vinhos e cervejas, que são originadas em países como Peru, Chile, Colômbia, Equador, México e países da América Central.
Dentre os principais compradores de alimentos da região, a China e os EUA acabam se destacando. O gigante asiático emergiu como um dos seus maiores mercados-destinos, nos últimos vinte anos, por conta da forte demanda chinesa. Até 2023, as importações agropecuárias do país vindas da América Latina cresceram, em média, 15% ao ano, atingindo o valor de US$ 70 bilhões. Já os EUA mantiveram-se como o maior importador de alimentos da região, aumentando as suas compras, principalmente de países da América Central, em média, 7% ao ano. Porém, a América Latina tem buscado novos parceiros nos últimos anos, como o Vietnã, que registrou uma taxa média anual de crescimento de 23%, e a Coreia do Sul, com 11%, o que mostra a iniciativa da região em buscar pela diversificação dos seus mercados-destinos.
É indiscutível, assim, a importância que a América Latina ganhou para a garantia da segurança alimentar no mundo. Todavia, o combate à fome e à desnutrição alimentar ainda são desafios que a região não conseguiu resolver internamente. De acordo com a FAO, a prevalência de insegurança alimentar moderada ou severa na região foi de 28,2%, perdendo apenas para a África, no biênio 2021-2023. É quase paradoxal que um dos maiores problemas da maior região exportadora de alimentos no mundo é a segurança alimentar. Isto decorre mais de restrições de acesso e não de disponibilidade. Por conta da má distribuição de renda e da alta inflação dos alimentos, exacerbadas ainda mais pelos choques mencionados anteriormente, o acesso da população de baixa renda da região à uma dieta saudável ainda é limitado. Em 2023, a América Latina teve o maior custo de uma dieta saudável entre todas as regiões do mundo, com um valor de aproximadamente 4,56 dólares (ajustados pelo poder de compra). Esse valor representa um aumento de 12% em relação ao ano anterior.
Além disso, o aumento da concentração das exportações alimentares da América Latina é também um ponto de preocupação para os países da região. Entre 2012 e 2023, o índice de diversificação geográfica do IICA caiu de 0,63 para 0,55, em decorrência do crescimento das exportações de produtos considerados de baixo valor agregado (soja, milho, trigo, açúcar, entre outros) para poucos países, principalmente para a China. Isso destaca um desafio para a região nos próximos anos em diversificar seus produtos e mercados para assegurar o patamar atual de exportações de alimentos.
Para que os países da região possam assegurar o combate à fome no resto do mundo e internamente, é necessária a combinação de esforços que foram empregados para alcançar a posição privilegiada no comércio internacional. A contínua adaptação às mudanças climáticas, a implementação de práticas agrícolas mais sustentáveis, o aumento da diversificação da pauta exportadora alimentar, a melhoria de transporte e infraestrutura e reformas econômicas são medidas cruciais tanto para a expansão das exportações de alimentos da América Latina quanto para a garantia da segurança alimentar interna e externamente.
Leia mais em: “The role of international trade in promoting food security”
[1] FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO. 2024. The State of Food Security and Nutrition in the World 2024 – Financing to End Hunger, Food Insecurity and Malnutrition in All Its Forms. Rome
Referências e Leituras recomendadas
OCDE; FAO. OECD-FAO Agricultural Outlook 2024-2033. Paris e Roma: OECD Publishing, 2024. Acesso em: 15 out. 2024.
FAO; IFAD; UNICEF; WFP; WHO. The State of Food Security and Nutrition in the World 2024: Financing to end hunger, food insecurity and malnutrition in all its forms. Roma: FAO, 2024. Acesso em: 15 out. 2024.
ARIAS, Joaquín; JANK, Marcos S.; CARDOSO, Victor M.; UMAÑA, Víctor; GILIO, Leandro. The role of international trade in promoting food security. Brasília: G20 Agriculture Working Group, 2024. Acesso em: 15 out. 2024.
* Utilize esse material como referência livremente.
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GLOSSÁRIO
Segundo definição da FAO, desnutrição é uma condição fisiológica anormal causada por ingestão inadequada, desequilibrada ou excessiva de macronutrientes e/ou micronutrientes. A desnutrição inclui subnutrição (atrofia e emagrecimento infantil e deficiências de vitaminas e minerais), bem como sobrepeso e obesidade.
Segundo a definição da FAO, fome é uma sensação física desconfortável ou dolorosa causada pelo consumo insuficiente de energia dietética. O termo fome é sinônimo de subnutrição crônica e é medido pela prevalência de subnutrição.
Consistem em estruturas nas quais os alimentos são produzidos, processados e comercializados dentro de uma área geográfica definida. Estes sistemas envolvem os mercados de agricultores locais, produtos heterogêneos e cadeias agroalimentares curtas, nas quais os agricultores além de produzir também podem desempenhar funções de marketing, armazenamento, embalagem, transporte e distribuição (SOUZA et al. 2020)
É a diferença entre as exportações e as importações de um país, em um determinado período.
Segundo definição da FAO, insegurança alimentar moderada refere-se àquelas pessoas que enfrentaram incertezas sobre sua capacidade de obter alimentos e foram forçadas a reduzir, às vezes durante o ano, a qualidade e/ou a quantidade de alimentos que consomem devido à falta de dinheiro ou outros recursos. Já a severa refere-se às pessoas que provavelmente ficaram sem comida, passaram fome e, no pior dos casos, passaram dias sem comer, colocando sua saúde e bem-estar em grave risco.
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